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O dia em que saí da prisão

Eles foram parar atrás das grades acusados de roubar, traficar, sequestrar, matar e, em alguns casos, cometer mais de um desses crimes. VEJA SÃO PAULO os acompanhou na data mais esperada de suas vidas — a da volta à liberdade —, ouviu o que passaram no cárcere e o que planejam para o futuro aqui fora

Por Daniel Bergamasco
Atualizado em 1 jun 2017, 17h29 - Publicado em 22 nov 2013, 16h06

“Nunca mais neste inferno!”, grita o primeiro. De chinelo de dedo, avista um ônibus e sai em disparada pelo chão de terra. Deixa para trás o Centro de Progressão Penitenciária de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, onde estão cerca de 1 700 homens. Outros oito descerão pela mesma rampa, um a um, depois de ser informados de que ganharam a liberdade. A maioria caminha cantando e gritando, com seus poucos pertences em mãos.

No fim da fila, totalmente calado e com os olhos fixos no interlocutor em sinal claro de desconfiança, surge Josenildo Barbosa da Silva, de 37 anos. Após três anos preso em Pernambuco e onze anos em São Paulo, pode enfim voltar às ruas. Tem 20 reais e umas moedas no bolso, valor referente aos últimos dias do expediente em uma lavanderia de Jundiaí, onde trabalhava enquanto cumpria o final da pena em regime semiaberto — apenas 24% dos detentos paulistas trabalham e 6% estudam. As duas condenações de Josenildo foram por sequestro. No primeiro, a vítima “era um empresário pernambucano vizinho do cantor Reginaldo Rossi”. No segundo, afirma que não teve participação. “Eu atuava apenas como pintor da casa onde armaram o cativeiro e não sabia o que se passava”. Em anos de reclusão, chegou a viver meses na cela solitária, chamada de “castigo”, por ajudar a cavar um túnel destinado a fuga. Sem contato com a família, não teria para onde ir, se não fosse o relacionamento com uma operadora de telemarketing aposentada precocemente por problemas de saúde que o visitava nos fins de semana. Ao ganhar a liberdade, em 17 de outubro, terminou a noite nos braços dela.

Josenildo foi um dos dez egressos que a reportagem acompanhou, nos últimos três meses, na data que descrevem como a mais esperada de sua vida: a da soltura. São homens e mulheres trancafiados sob a acusação de roubar, traficar, matar, sequestrar, e que conquistaram o direito de uma vida livre, por cumprimento total de pena ou progressão para o regime aberto, no qual há restrições brandas (não ir a bares, recolher-se em casa antes das 22 horas etc.). Mostram o rosto porque juram regeneração. Em alguns casos, apresentam-se como inocentes, vítimas de injustiças e mal-entendidos. Confira as histórias no links abaixo.

+ 20 reais no bolso e o Cambuci como destino

+ Dez dias por extrair rocha do solo

+ “Cansei de viver escondida”

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+ Roupas no lixo

+ O “único” gay na cadeia

+ Encontro improvável

+ Ninguém veio me buscar

+ Batismo na vida nova

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+ O sacrifício da “guerreiras”

As emoções do primeiro dia aqui fora começam quase sempre na forma de surpresa. Quem não possui advogado que cheque cotidianamente o andamentodo processo não tem como saber se a avaliação sobre a saída antecipada graças aos benefícios legais ficou parada nos fóruns, devido à matemática complexa do sistema punitivo brasileiro e à imprevisibilidade da burocracia. Quando um juiz assina o alvará de soltura, o documento chega à unidade em questão de horas. É enviado por e-mail, fax ou entregue pessoalmente por um oficial de Justiça. Ao receber o alvará, a instituição deve liberar o sentenciado quanto antes. “No meu caso, o carcereiro entrou gritando ‘Matias, liberdade!’ e os companheiros bateram palmas”, dizia Claudio Matias, de 35 anos, condenado por roubo de carro, duas horas após encerrar seus três anos de cárcere, em 3 de setembro. Geralmente, porém, a comunicação é feita em reservado, pela direção do centro de detenção. O beneficiado rubrica alguns papéis, retira o que lhe pertence e, pronto, está na rua.

A jornada, a partir daí, costuma ser épica. Nem a família nem amigos são avisados (com exceção, é claro, das vezes em que companheiros de cela fazem isso de um celular clandestino). Na maioria dos casos, os indivíduos saem sem dinheiro algum. Tentam então mostrar o alvará a motoristas de ônibus e funcionários de metrô e trens, para conseguir embarcar de graça. É comum, aliás, que nem saibam regressar para casa. Foi o que aconteceu com Noel Pereira, na saída da Penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos. Morador de Taboão da Serra, ele precisava cruzar a Grande São Paulo de leste a oeste, mas não tinha certeza sobre qual ônibus tomar para alcançar o destino. Atônito, sem ter tido direito a nenhuma saidinha temporária em dois anos de reclusão, atravessou as grades às 18 horas e se dirigiu à Rodovia Dutra (no sentido errado, rumo ao Rio). Esperou lá quinze minutos, desconfiou do equívoco, cruzou a passarela, aguardou mais de uma hora, metade sob chuva, até decidir pedir informações a pessoas que estavam no ponto e descobrir que deveria caminhar cerca de 1 quilômetro em direção à Rodovia Ayrton Senna — a reportagem evitou interferir, com o objetivo de presenciar o que acontece de fato com pessoas nessa situação. Achou o ponto correto, ficou ali por mais trinta minutos e chegou à sua casa perto das 23 horas. Ou seja, cinco horas depois. A família se reuniu em torno dele, aos prantos. Quando foi preso, assaltando um ônibus, era usuário de crack e vivia na rua. “Quero minha vida de volta”, dizia.

Das 157 unidades prisionais do estado, 28 estão na Grande São Paulo, incluindo a capital. Os prédios comportariam 22 467 pessoas, mas abrigam 48 868, 23% do contingente do estado, em uma proporção de 2,2 “reeducandos” (termo usado pelo governo) por vaga. Para a socióloga Julita Lemgruber, autora de livros sobre o tema, como Cemitério dos Vivos, e membro do conselho do International Centre for Prison Studies, o principal problema não é a falta de pavilhões, mas o excesso de encarceramentos. “Legisladores, promotores e juízes precisam entender que interessaria a todo mundo estimular penas alternativas, levando os criminosos a trabalhar.” Ela lembra que as cadeias estão entupidas de homens que não foram ainda a julgamento (cerca de 40% em média). Além disso, os gastos com detentos são altos: cada um deles custa 1 300 reais mensais aos cofres públicos paulistas, o suficiente para manter quatro alunos nas séries iniciais do ensino fundamental. “O grande ônus, porém, é o fato de ladrões de galinha saírem de lá graduados no crime, pela convivência com gente muito pior.”

As celas cheias de autores das maiores barbaridades abrigam também gente como o pedreiro João Paulo de Jesus Moura. Ele passou dez dias entre a Polícia Federal e o Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, devido a um crime ambiental (trabalhou extraindo rocha para paralelepípedos de uma chácara sem licença para isso — a pedido do dono, de acordo com ele). “Quando entrei, o carcereiro mostrou minhas mãos ferradas de enxada e disse que eu deveria ser um exemplo para os outros.” No pouco tempo em que ficou, descobriu rapidamente a “lista” de proibições. “Não se pode cantar, os companheiros não deixam”, ensina. “Uma vez, um cara começou uma música e voaram em cima dele para que calasse a boca. Se você cantarola, é porque ficou feliz, e ali não é lugar para isso.” Em uma cela com 29 homens — metade deles condenada por estupro — onde caberiam oito, segundo conta, quem chega por último vai direto para o chão, onde todos dormem, como se fala no jargão local, “de valete” (lado a lado, alternando os pés e a cabeça, de modo a “não formar casalzinho”). Também aprendeu que não basta ter alguém para levar o “jumbo”, pacotes de comida, roupas e produtos de higiene. Cada unidade tem uma lista do que está autorizado. Bolacha, apenas sem recheio (a pasta pode conter drogas misturadas). Chocolate, pelo mesmo motivo, só puro, sem nada crocante. Coca-Cola é autorizada. Fanta, só se não for do sabor uva (era usual fermentá-la para produzir bebida alcoólica). Da dificuldade de não errar na lista, nasceu há quatro meses em São Paulo um curiosíssimo serviço de delivery: o Jumbo CDP. Os clientes são parentes e amigos do preso, que compram pela internet e pelo telefone e mandam entregar os itens permitidos em cada prédio, de leite em pó a lençóis. “Quando o filho de uma amiga foi preso, percebi a complexidade de enviar produtos à cadeia e enxerguei ali uma oportunidade”, conta o empresário Sebastião de Albuquerque Junior, dono também de uma confecção. O negócio está ainda deslanchando. Em outubro, foram oitenta entregas. O item campeão, por enquanto, é a calça bege (igual à do uniforme, para propiciar mais trocas).

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Por pior que seja a vida no calabouço, o sonho com a liberdade é, com frequência, carregado de pesadelos. “Há gente que volta cedo da saidinha simplesmente porque não tem para onde ir”, conta Renata Maria da Silva, solta no mês passado depois de quase nove anos (tinha duas condenações por tráfico de drogas, a segunda delas duas semanas após deixar a cadeia pela primeira vez). Além disso, o que será do futuro? “Minha família conhece muita gente em Avaré, mas a maioria das pessoas encontra dificuldade para arranjar serviço”, constata Renata, que continua à procura de um posto. “A resistência contra egressos no mercado é grande no mundo todo, mas no Brasil, em especial, ainda são pouquíssimos os projetos nessa área”, diz o sociólogo José Pastore, autor do livro Trabalho para Ex-Infratores (Editora Saraiva). Para ele, mudar esse quadro interessa a toda a sociedade. “Quando um preso consegue um emprego, a taxa de reincidência cai de 70% para 20%”, diz. Dos dez presos que a reportagem acompanhou, quatro passaram pela cadeia mais de uma vez por mais de uma condenação.

A Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo tem iniciativas nessa área. Em setembro de 2011, implantou, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) e o Conselho Nacional de Justiça, o Programa Começar de Novo. Desde então, 1 242 homens e 29 mulheres foram treinados em ofícios como padeiro, pizzaiolo, pedreiro, pintor e eletricista. O convênio se encerrou oficialmente faz quase três meses, mas ainda há algumas pessoas em treinamento. A renovação está sendo negociada, mas até agora não foi feita. A Fundação Estadual de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap) ajuda na capacitação ao empregar mensalmente 1 500 sentenciados, com salário de cerca de 560 reais, o equivalente a 75% de um salário mínimo. Em outro programa, o Empregabilidade, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e o Senai capacitam para o mercado egressos indicados pela ONG AfroReggae. A primeira turma se formou no início do mês, após dois meses de curso de panificação. Outras turmas serão criadas no ano que vem, em áreas como construção civil.

Com o apagão de mão de obra dos últimos anos, muitas empresas têm aberto vagas para ex-detentos.

Alguns dos casos são as obras da Arena Corinthians, o Itaquerão, e do trecho norte do Rodoanel. E.S., 44 anos, que pede para não ter a identidade revelada, deixou as grades há um mês após quase vinte anos (possui uma série de condenações por crimes como assalto a bancos). Desde dezembro de 2012, quando já estava em regime semiaberto em uma unidade de Franco da Rocha, era operário em uma metalúrgica. Mesmo com a soltura, o patrão o manteve no posto. Há três semanas, foi promovido a “encarregado geral” e o salário saltou de 900 para 2 500 reais. “Tive essa chance por ser pontual, nunca faltar e mostrar que quero mais da vida”, gaba-se ele, que se pega às vezes com a cabeça baixa e as mãos para trás quando chega a uma loja, por exemplo. “Acostumar com tudo aqui fora é muito difícil para quem passou metade da vida na cadeia. Ter emprego me faz acreditar que agora as coisas serão diferentes.”

Acabou mal

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O conturbado início de liberdade de alguns criminosos célebres

 

Bandido da Luz Vermelha – Condenado por quatro homicídios, João Acácio Pereira da Costa ficou mais conhecido por assaltar casas paulistanas munido de uma lanterna rubra após desligar a energia. Esteve na prisão de 1967 a 1997 e, liberto, foi morto a tiros quatro meses depois, ao se envolver em uma briga. 

Capa Presos (15)
Capa Presos (15) ()

Chico Picadinho – Ele tem 71 anos de idade e já passou quase quarenta anos na prisão (trinta é o limite estabelecido pela Constituição), mas Francisco Costa Rocha, o Chico Picadinho, segue detido na Casa de Custódia de Taubaté. O motivo: laudos apontaram que ele ofereceria perigo. Em 1966, esquartejou o corpo de uma bailarina austríaca em um apartamento na Rua Aurora. Solto dez anos depois, repetiu o crime de forma semelhante, com uma prostituta.

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Capa Presos (11)
Capa Presos (11) ()

Cabo Bruno – Ele se tornou mito ao liderar um esquadrão responsável pelo assassinato de mais de cinquenta supostos criminosos, quase sempre na Zona Sul. Após ser condenado a 117 anos de prisão e cumprir 27, Florisvaldo Oliveira foi solto em 2012, aos 53 anos. Passou 35 dias em liberdade, até morrer alvejado por vinte tiros em Pindamonhangaba, ao voltar de um culto evangélico (ele tinha se tornado pastor na prisão). A autoria da emboscada nunca foi conhecida.  

 

O que não entra

O “jumbo”, conjunto de produtos enviados pelas famílias, tem uma série de itens proibidos, que variam conforme a unidade. Eis alguns exemplos comuns

  • Bolacha recheada

Teme-se que haja drogas misturadas ao creme

  • Carne com osso

É difícil identificar no raio-x que não se trata de outro tipo de objeto, como facas

  • Fanta Uva

Os presos gostam de fermentá-la para produzir álcool

  • Salgadinho Torcida

Por ser oco, pode abrigar cocaína, por exemplo

  • Sabonete ou sabão da cor das grades da cela

Há o risco que vire massa para disfarçar grades serradas ou buraco na parede

  • Cobertor com barra

Pode esconder objetos

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