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Poluição está acima do recomendado pela OMS em 56 pontos da capital

A situação é pior em casas noturnas, bares e grandes avenidas

Por Maria Paola de Salvo e Giuliana Bergamo [colaborou Fábio Soares]
18 set 2009, 20h27

Morador do Campo Belo, José da Silva obedece à mesma rotina toda sexta-feira. Levanta cedo e vai de carro até o Parque do Ibirapuera, onde corre e se exercita por uma hora. Volta para casa, arruma-se e enfrenta o trânsito pesado rumo a um shopping da Zona Norte para trabalhar. De lá, segue para uma happy hour com os amigos num bar dos Jardins. Costuma terminar a noite numa balada alternativa da Barra Funda. Ao fim do dia, terá inalado uma quantidade cerca de vinte vezes o limite estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (veja quadro na pág. 37) do poluente mais agressivo ao organismo: as partículas finas, aquela fuligem que tinge de preto a lataria dos automóveis, as cortinas e os móveis das casas. Silva é um personagem fictício, mas as más condições de ar nos bairros citados acima são reais e atingem a todos os paulistanos diariamente. Foi o que a reportagem de Veja São Paulo constatou ao medir esse tipo de poluente em setenta lugares entre os dias 1º e 17 deste mês.

Com um aparelho emprestado do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da USP e orientação de seu coordenador, o médico Paulo Saldiva, verificamos a qualidade do ar em casas noturnas, bares, parques, corredores de ônibus e shoppings espalhados nas cinco regiões de São Paulo. Em cada um dos pontos, medimos por cinco minutos a concentração de partículas inaláveis finas. Do total de lugares analisados, 56 apresentaram índices acima do limite estabelecido pela OMS – média de 25 microgramas por metro cúbico ao longo de um dia. O ar mais carregado foi o da casa noturna Pink Elephant, que registrou uma concentração de 3 050 microgramas de partículas finas por metro cúbico – 305 vezes a do Parque Buenos Aires, em Higienópolis. “Os resultados são surpreendentes. Nossas ruas, especialmente os corredores de tráfego, possuem ar inadequado”, afirma Saldiva. “A exposição prolongada a esse tipo de ambiente, situação cada vez mais frequente pelos congestionamentos da cidade, nos expõe a um risco que não podemos evitar.”

O teste não deve ser encarado como um trabalho científico ou com resultados definitivos. Em estudos desse tipo, os pesquisadores realizam medições contínuas ao longo de um dia inteiro e em diversos períodos do ano. Dessa forma, descartam as influências de temperatura, umidade e vento. Ainda assim, as medições são um retrato instantâneo de como estava o ar no momento em que o aparelho entrou em ação. Ou seja, quem circulava por algum desses setenta lugares durante o teste respirou a quantidade de poluente registrada. “Tão importante quanto as concentrações medidas ao longo do dia são as doses recebidas a cada vez que inspiramos. E isso o medidor registra muito bem”, diz Saldiva. No caso das partículas finas, a exposição a altas quantidades, ainda que por curtos períodos, é suficiente para desencadear problemas de saúde. Prova disso é o trabalho realizado nos anos 2000 e 2001 pelo Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da USP. Após submeterem 48 marronzinhos saudáveis a exames, os pesquisadores concluíram que duas horas de trabalho em avenidas de grande fluxo foram suficientes para aumentar a pressão arterial do grupo estudado.

Os valores registrados preocupam tanto porque as partículas finas são o poluente com o maior poder de agredir o organismo humano. Com um vigésimo da espessura de um fio de cabelo, o composto é capaz de penetrar as porções mais profundas e delicadas do corpo (veja quadro na pág. 33). “Lá, deflagra inflamações, processos que dão origem a parte das doenças cardiovasculares e aos cânceres”, conta o cardiologista Raul Santos, do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas. Por esse motivo, as substâncias têm impacto direto na longevidade. Depois de analisar 51 regiões metropolitanas dos Estados Unidos, pesquisadores das universidades Brigham Young e Harvard concluíram que a redução de apenas 10 microgramas por metro cúbico do poluente pode elevar a expectativa de vida de uma população em até sete meses.

A principal fonte dessas minúsculas vilãs são os combustíveis de veículos, responsáveis por 37% das partículas emitidas. É praticamente impossível circular pela cidade sem respirar ao menos uma lufada de partículas. Nosso teste mostrou altas concentrações de poluentes tanto em ambientes abertos quanto em locais fechados, como baladas e bares, que registraram os resultados mais impressionantes. A média em dezoito desses lugares ultrapassou os 1 000 microgramas por metro cúbico, valor vinte vezes o encontrado em avenidas e túneis da cidade. Em outras palavras, o ar da Avenida dos Bandeirantes, mesmo carregado de fumaça dos caminhões que circulam por ali, é mais puro que o da pista de dança da Pink Elephant, o das mesinhas do All Black e até o do banheiro feminino do Vegas Club. “O grande vilão, nesse caso, é o cigarro, cuja fumaça também contém partículas finas”, diz o pneumologista Ciro Kirchenchtejn, do Hospital Beneficência Portuguesa. Nas ocasiões em que um fumante soltou baforadas próximo ao medidor, os números saltaram para até assustadores 14 000 microgramas por metro cúbico. “Nunca vi nada parecido em nenhuma cidade do mundo. Mesmo as mais poluídas registram picos de 400 microgramas por metro cúbico ao longo do ano”, afirma Saldiva. Segundo ele, um baladeiro que passe duas horas nesse ambiente triplica o risco de sofrer infarto ou arritmia. Os mais afetados, porém, são os funcionários dos estabelecimentos, obrigados a conviver com esse tipo de poluição quase que diariamente. “Por isso a aprovação da lei estadual que veta o fumo em ambientes fechados é tão importante”, diz Kirchenchtejn.

Ao ar livre, a situação não é tão alarmante, mas também desperta preocupação. Vinte por cento das ruas e avenidas avaliadas apresentaram níveis de poluentes maiores que 100 microgramas por metro cúbico, quantidade semelhante à encontrada em cidades poluídas como Pequim, onde a população costuma usar máscaras em dias muito críticos. É o caso das avenidas do Estado, dos Bandeirantes e da Marginal Pinheiros, além da Ponte Ary Torres. Todas têm em comum o fato de concentrar um fluxo diário de caminhões e ônibus movidos a diesel, responsáveis por 80% do total de partículas finas emitido pela frota paulistana. Não por acaso, quando um desses grandalhões cruzava o caminho da reportagem soltando aquela fumaça preta e malcheirosa, os números do medidor atingiam picos de 836 microgramas por metro cúbico, 33 vezes o limite da OMS. Os veículos pesados movidos a diesel também fizeram a diferença no Complexo Viário Maria Maluf, o mais sujo entre os sete túneis avaliados. Nessas horas, de nada adianta fechar os vidros e ligar o ar-condicionado para se proteger da sujeira. Mesmo adotadas essas providências, nosso medidor registrou no Túnel Ayrton Senna praticamente as mesmas quantidades de poluentes de quando o carro circulava com as janelas abertas. Como as partículas podem se espalhar por centenas de quilômetros, locais próximos a grandes avenidas, como o Hospital Albert Einstein, no Morumbi, e o Shopping Cidade Jardim, na Marginal Pinheiros, também apresentaram altas doses de poluentes.

Apesar do grande dano que o material particulado fino impinge à saúde humana, a legislação brasileira ainda não dispõe de critérios para estabelecer o controle das emissões desse poluente. Além disso, a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) só passou a medir a presença do material particulado fino em 1999 – mesmo assim, manualmente, e em apenas três de suas catorze estações. “Não temos equipamentos nem funcionários suficientes para realizar os registros”, diz Carlos Komatsu, gerente do departamento de Tecnologia do Ar da companhia. Isso significa que, quando os relógios espalhados pela cidade indicam que o ar está bom, regular ou ruim, a dosagem de partículas finas não faz parte do resultado. “Estamos duas décadas atrasados em relação aos países que adotam os limites da OMS”, lamenta Carlos Bocuhy, membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

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Embora o Brasil tenha uma legislação falha, a situação já foi muito pior. Até o fim da década de 80, as emissões eram cerca de 97% maiores do que as de hoje. A redução só foi possível graças ao Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), que desde 1986 estabelece metas e mecanismos de redução de poluentes liberados por carros. As montadoras foram obrigadas a implantar tecnologias de controle, como motores mais modernos, catalisadores e filtros. A Petrobras também teve de mudar a formulação do combustível para adequá-lo a essas melhorias. No entanto, as partículas finas não dão mostras de que deixarão nossos pulmões em paz tão cedo. Desde 2003, suas concentrações anuais em São Paulo mantêm-se no mesmo patamar de 20 microgramas por metro cúbico, considerado, pela própria Cetesb, o dobro do valor médio estabelecido pela OMS. “Isso ocorre porque seus maiores emissores, os caminhões e os ônibus, ainda circulam por aí com diesel de má qualidade, o que impede o uso de tecnologias que reduzem as emissões, como catalisadores e filtros”, diz Gabriel Murgel Branco, engenheiro mecânico, especialista em poluição veicular, combustíveis alternativos e projetos de veículo. “Há pouco estivemos muito próximos de reverter esse quadro, mas não foi o que aconteceu.” Uma resolução do Conama de 2002 estabelecia que, a partir de 1º de janeiro deste ano, o diesel que abastece ônibus e caminhões deveria conter menos enxofre. Em outubro passado, um acordo entre o Ministério Público e os governos federal e estadual adiou a medida para 2012.

Outra atitude que poderia mitigar a emissão de poluentes é o incremento do transporte coletivo, para torná-lo atraente a quem hoje circula sozinho em um automóvel. Também é preciso fiscalizar a frota para averiguar se as tecnologias que controlam a emissão estão mesmo funcionando. “Além do dano por tempo de uso, há quem adultere catalisadores para dar mais potência ao carro. Daí a importância de medidas como a inspeção veicular”, alerta Branco. Diante desse cenário preocupante, o cidadão comum tem pouco a fazer. Nem mesmo a máscara cirúrgica – aquela que o cantor Michael Jackson usa – dá conta de segurar tanta sujeira. Enquanto as regras para emissão de poluentes permanecerem frouxas, milhares de Josés da Silva continuarão sofrendo com o ar que se respira.

Os vilões do ar

Os veículos são as principais fontes de partículas finas – responsáveis por 37% do total. Caminhões e ônibus movidos a diesel poluem seis vezes mais que motos e doze vezes mais que carros

Fonte: Gabriel Murgel Branco, engenheiro e consultor ambiental

Como diminuir sua exposição aos poluentes

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· Evite horários de pico – Nos períodos em que o tráfego é mais intenso, a concentração de poluentes numa mesma rua ou avenida pode duplicar em relação à de horários mais tranquilos.

· Não respire pela boca – Ela tem menos proteção contra material particulado que o nariz, dotado de células especializadas em empurrar a sujeira para fora.

· Espalhe bacias de água pela casa – A umidade torna as partículas mais pesadas. Além de dificultar sua inalação, faz com que elas se depositem sobre o chão ou outras superfícies.

· Se possível, evite morar em vias muito movimentadas – Estudo publicado na revista científica Circulation mostrou que moradores de áreas situadas a 50 metros de ruas congestionadas têm 63% mais risco de entupimento nas veias e artérias.

Fontes: Gabriel Branco, engenheiro mecânico; Paulo Saldiva, patologista e Raul Santos, cardiologista

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