Continua após publicidade

Pitangas

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h45 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

Fui flagrado apanhando pitangas no bairro de Perdizes. Não apenas comendo algumas, como pode acontecer com qualquer humano ou passarinho. Com humanos, quando tocados por súbita tentação ou nostalgia; com passarinhos, ao cuidarem da própria subsistência.

O nome justo e certo para o que eu estava fazendo é colhendo: eu estava colhendo pitangas na Rua Itapicuru. Gordas pitangas, de cores variando do vermelho ao roxo. Havia um disfarçado constrangimento na atenção com que eu agia, não olhava para lado nenhum que não para as pontas dos galhos, com receio de encontrar algum olhar de censura. Aquelas frutas pertenciam por direito aos pássaros do bairro. Eles não tinham supermercados ou feiras para se abastecer, os alimentos deles talvez tivessem escasseado durante a longa seca recém-terminada. As chuvas trouxeram alívio para as pitangueiras, que, parece, estavam se arrebentando de vontade de dar pitangas.

Havia duas ou três circunstâncias a meu favor. Uma delas: fui menino de convivência com pitangueiras. Isso marca a gente, deixa uma carência insolúvel quando se muda para apartamento numa metrópole. Ninguém liga para os sem-pitangueira, é problema menor na cidade grande. Que eu soubesse, seria um problema só meu e dos sabiás.

Outra circunstância a meu favor: a minha geléia de jabuticaba estava no finzinho. Fiz eu mesmo essa geléia, com as frutas da safra passada que escaparam da voracidade dos micos que saem da mata para catar comida no nosso sítio. Melhor comerem as jabuticabas do que os ovos dos passarinhos. De repente, achei uma ótima idéia fazer geléia de pitanga.

Continua após a publicidade

Ainda uma coisa a meu favor – e foi mais um detalhe que passou pela minha cabeça no instante da minha estouvada decisão: quando saí do sítio no feriado passado, minha pitangueira estava frutificando. Quando voltar no próximo feriado, os micos não terão deixado nada para mim.

E, quase por último: feiras e mercados não vendem pitanga. É fruta que recusa o comércio: não dura, amassa na manipulação, fere-se, fica passada, mela, fermenta. Ainda assim, se houvesse pitangas à venda, eu não iria disputá-las nas árvores com os bem-te-vis de Perdizes.

Minha última justificativa: não se encontra geléia de pitanga no comércio de rotina. Pode haver, no Norte talvez, mas não encontrei por aqui. É fácil achar de abacaxi, laranja, maçã, amora, damasco, frutas vermelhas, morango, mirtilo, pêssego, até de jabuticaba já vi. Outra que sumiu foi a de marmelo, mas essa minha sogra faz, no tempo da fruta. Não sei se há pitangas em outros países, talvez não. É obrigação nossa, nacional, tornar disponível a geléia de pitanga. Se fosse estrangeira, haveria, importada, como há a de blueberry.

Continua após a publicidade

Então, retomando o início: vinha eu de volta do supermercado, com dois saquinhos de compras miúdas, caminhando atento às armadilhas das calçadas, quando vi, no chão, o cenário perturbador: pitangas caídas, maduras, vítimas de algum vento da manhã, muitas delas comidas pela metade, quantidade de caroços limpos de frutinhas já degustadas… Olhei para o alto: afe! Pé carregado, do verde ao roxo. Adiante, outro pé, igual! Ah, o que a chuva e o sol haviam feito em quinze dias…

Foi automático: passei as compras de um saquinho do supermercado ao outro e comecei a colheita. Dava-me o prazer de escolher as mais bonitas. Quando ficaram mais difíceis, apanhei uma vassoura velha numa caçamba de demolição ali perto e com ela verguei os galhos mais altos, engordando o saquinho. Geléia rende pouco, e a fartura de matéria-prima me empolgava. Nesse momento, passava de carro um ex-colega de jornal, que me reconheceu e parou. Eu me senti ridículo. Já estava ensaiando explicações, longas talvez, que nos cansariam os dois, quando ele cortou:

– Maravilha! Eu sempre quis fazer isso e nunca tive coragem!

Continua após a publicidade

Desceu do carro e me ajudou.

Publicidade

Essa é uma matéria fechada para assinantes.
Se você já é assinante clique aqui para ter acesso a esse e outros conteúdos de jornalismo de qualidade.

Domine o fato. Confie na fonte.
10 grandes marcas em uma única assinatura digital
Impressa + Digital no App
Impressa + Digital
Impressa + Digital no App

Informação de qualidade e confiável, a apenas um clique.

Assinando Veja você recebe semanalmente Veja SP* e tem acesso ilimitado ao site e às edições digitais nos aplicativos de Veja, Veja SP, Veja Rio, Veja Saúde, Claudia, Superinteressante, Quatro Rodas, Você SA e Você RH.
*Para assinantes da cidade de São Paulo

a partir de R$ 39,90/mês

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.