Continua após publicidade

O velho campeão

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 12h00 - Publicado em 3 out 2015, 00h00

Usei um trecho do Machado de Assis cronista em uma das minhas crônicas recentes e logo me perguntaram como é que consegui encontrar exatamente aquela passagem para fechar “com chave de ouro” o tema das lendas que tomam o lugar dos fatos por se terem tornado mais interessantes do que eles. O trecho falava, se se lembram, do grito que não houve às margens plácidas do Ipiranga.

Caros, caríssimos leitores, o cronista é um fingidor. Ou antes: um prestidigitador. O que lhes foi servido como fim foi justamente o ponto de partida. Eu havia lido essa tirada do Machado, dizendo que preferia a lenda aos fatos da Independência, aí me lembrei de uma fala sobre lenda e fato em um faroeste clássico, e pensei: isso dá samba, no meu caso, crônica.

A data fortuita para publicá-la seria o 7 de Setembro. Enfileirei no começo algumas lendas que se sobrepuseram à história original, como os três reis magos, o capacete de chifres dos vikings, o cemitério de elefantes, Nero e o incêndio de Roma, o desenho do camundongo Mickey etc., e pronto. O fecho, Machado já me havia dado.

É invariável que perguntem, em festas literárias e palestras, quem é o melhor cronista brasileiro, na minha opinião. É tempo de campeões. Tempo de vencedores, de melhor isso ou melhor aquilo, de campeões em velocidade, em fogões, em reality shows, em dança de famosos, em canto pop, em ringues e octógonos, em pistas, em esportes, em vendas, em fortunas — natural que se procurem campeões da crônica.

Evito falar dos vivos e dos muito vivos. O meu é um critério literário, esgueiro-me dos meros contadores de casos, sem arte, e dos donos da verdade. Entre os recentes, cito Rubem Braga, três mineiros (Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos), Nelson Rodrigues, mais para trás, João do Rio e, campeão, Machado de Assis. Com ele, saboreio a mestria no trato com a língua, visito uma cidade do século XIX, o Rio, apanhada por um mestre do olhar. Acostumados a um Machado mais rigoroso no romance e na poesia, vemos, na crônica, que ele frequentemente solta o verbo.

Continua após a publicidade

Quantas expressões do povo nessa prosa, ainda frescas, correntes, troco miúdo das ruas: “Fiquei meio jururu”, ele diz em 1889; “trocar as bolas”, no sentido de tomar uma coisa pela outra, nesse mesmo ano; um “rôlo”, em 1876, “que acabou por deixar dezenove homens fora de combate”; o preço dos ingressos para a ópera o escandaliza, em 1876: “Camarotes a 200 paus!”; deplora o câmbio, que “anda já tão safado”, em 1894; glosa a moda de perguntar “O que há de novo?”, em 1883, e comenta “o quilo bem pesado”, nosso conhecido nas feiras até hoje; queixa-se de “um sol de rachar”, em 1894; reclama da lentidão do bonde a esperar por um passageiro que aponta numa esquina, e adiante se repete “a mesma lengalenga”, em 1877; funcionários toscos da administração são “pés-de-boi”, em 1878, e o almofadinha tem “um ar pelintra”.

Nenhuma dessas gírias soa tão nervosamente divertida quanto esta, de 15 de abril de 1877, no excitado comentário sobre uma fortuna de 50 contos em letras de câmbio que o próprio dono queimou, um homem de boa posição, de bom nome e de crédito, acusado de tê-las falsificado. Somem as provas, desaparece o crime. Comenta Machado: “É de fazer tremer a passarinha”.

Que ele quis dizer com isso? É o que estou pensando? Sim, leem-se com gosto essas crônicas de um homem de gênio que morreu há 107 anos.

Publicidade

Essa é uma matéria fechada para assinantes.
Se você já é assinante clique aqui para ter acesso a esse e outros conteúdos de jornalismo de qualidade.

Domine o fato. Confie na fonte.
10 grandes marcas em uma única assinatura digital
Impressa + Digital no App
Impressa + Digital
Impressa + Digital no App

Informação de qualidade e confiável, a apenas um clique.

Assinando Veja você recebe semanalmente Veja SP* e tem acesso ilimitado ao site e às edições digitais nos aplicativos de Veja, Veja SP, Veja Rio, Veja Saúde, Claudia, Superinteressante, Quatro Rodas, Você SA e Você RH.
*Para assinantes da cidade de São Paulo

a partir de R$ 39,90/mês

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.