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Novas medidas podem restringir o trânsito de caminhões no centro expandido

No mês em que prefeitura prepara novas medidas para diminuir tráfego de caminhões, VEJA SÃO PAULO acompanhou a rotina de seis motoristas que cruzam a cidade ou circulam por aqui em meio ao trânsito caótico

Por Maria Paola de Salvo
Atualizado em 6 dez 2016, 09h05 - Publicado em 18 set 2009, 20h30

Os 230 000 caminhões que rodam diariamente pela cidade se tornaram cada vez mais indesejados. Desde o último dia 1º, a prefeitura estuda medidas para fechar ainda mais o cerco – e as ruas de São Paulo – a esses grandalhões. Está em discussão um decreto que deve proibir esses veículos de circular, estacionar, carregar ou descarregar entre 5 e 21 horas numa área de 100 quilômetros quadrados do centro expandido. Ou seja: entregas, só à noite e de madrugada. Se o prefeito Gilberto Kassab de fato sacramentar esse conjunto de medidas corajosas, o que pode acontecer em maio, haverá uma mudança em todo o sistema de entrega da cidade. A área de restrição atual é de apenas 24,5 quilômetros quadrados do centro expandido. Dentro dela, os caminhões hoje não podem rodar das 10 às 20 horas. Eles também terão de respeitar o rodízio, o que nunca precisaram fazer desde que a restrição foi criada, em 1997. A regra valerá, inclusive, para os 40 000 veículos que cruzam nossas marginais em direção a outras rodovias.

“Estamos na idade da pedra em relação ao transporte de carga”, afirma o secretário municipal de Transportes, Alexandre de Moraes. “Não existe capital no mundo que permita a circulação de caminhões durante o dia inteiro.” Como era de esperar, a novidade provocou chiadeira dos comerciantes, dos caminhoneiros e das transportadoras. “O comércio de pequeno porte não tem estrutura nem condições de receber mercadorias à noite”, afirma Francisco Pelucio, presidente do Sindicato das Empresas de Transportes de Carga (Setcesp). “Nosso custo deve aumentar muito e, sem dúvida, será repassado ao produto final.”

Os caminhões são um mal necessário. Cumprem um papel fundamental na vida econômica da cidade, mas são um dos principais vilões do trânsito. O que seria dos supermercados, postos de gasolina, shoppings e outros serviços sem eles? Esses veículos abastecem a capital diariamente com 378 000 toneladas de produtos. Apesar de representarem 4% da frota, respodem por 35% dos congestionamentos. A CET socorre, em média, 2 300 caminhões quebrados por mês. São 76 por dia, ou três (isso mesmo, três) a cada hora. Um único grandalhão parado na faixa demora cerca de 28 minutos para ser removido da rua – quatro vezes mais que um carro – e causa lentidão de 6 quilômetros.

Para mergulhar nesse universo da boléia, Veja São Paulo acompanhou seis caminhoneiros que cruzam nossas ruas ou circulam por aqui. Eles trabalham em média oito horas por dia, ganham cerca de 1 100 reais por mês – com exceção de dois autônomos – e também penam nos congestionamentos. A dificuldade de encontrar vagas para estacionar é uma das maiores reclamações dos motoristas. Faltam espaços de carga e descarga nas ruas e estrutura para recebê-los nos condomínios e no comércio. O cenário é um prato cheio para filas duplas, bloqueios de faixa e infrações de todo tipo. Metade deles, aliás, assume já ter tomado multa por parar em local proibido. “Muitos motoristas nos xingam, mas São Paulo não pode viver sem a gente”, afirma Severino Cabral Nogueira, cegonheiro que, ironicamente, despeja trinta carros por noite na assombrosa frota paulistana de 6 milhões de veículos.

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CARGA: BEBIDAS

Três infrações numa única manhã

Antes das 6h30, todos os 28 caminhões da distribuidora de bebidas Água Funda, na Zona Sul, deixam a garagem da empresa em direção a 12.000 pontos da cidade. São bares, mercadinhos, padarias e tabacarias abastecidos diariamente com 600 caixas de cerveja, refrigerante, água, cachaça e conhaque. Na boléia de um dos veículos viajam o motorista Ailton Sales e seu ajudante, Edsio João dos Santos. Responsável pelas entregas no centro expandido, a dupla enfrenta uma série de restrições na hora de descarregar. A começar pela falta de vagas. “Ninguém quer trabalhar nesta região porque não tem onde parar”, diz Sales. Só neste ano, ele foi multado quatro vezes por estacionar em local proibido e acumulou 16 pontos (com 20, terá sua carteira suspensa). Basta acompanhá-lo numa manhã de trabalho para ver que não vai ser fácil escapar da punição. No último dia 15, foram 44 entregas em seis horas. Pouco antes das 9 horas, Sales bloqueou o cruzamento das avenidas Rangel Pestana e do Estado. Cinco minutos depois, tomou bronca de uma marronzinha na Rua Tabatingüera. “Aqui é Zona Azul, o senhor precisa colocar o cartão no pára-brisa”, avisou a agente. Às 9h45, encostou na esquina seguinte. Só poderia estar ali a partir das 10 horas, mas ele nem ligou. “Como não tem lugar, vou estacionar atrás deste ônibus para despistar a fiscalização. É a malandragem do trampo”, diz. Mais tarde, parou num ponto de ônibus da Rua do Gasômetro para abastecer um bar. E se o coletivo chegar? “Ele se vira, é rapidinho”, justifica. “Se eu não me arrisco, o patrão não vende e perco o emprego.”

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CARGA: COMPOSTO QUÍMICO

São Paulo, passagem obrigatória

O motorista Nelson José dos Santos dorme com as galinhas. E acorda antes delas todos os dias. Deita-se às 18 horas, desperta às 2h30 e às 4 da manhã já está no volante de seu caminhão Mercedes-Benz 2006. O esforço tem um único objetivo: fugir do trânsito de São Paulo, cidade que é obrigado a cruzar diariamente. Na profissão há quarenta anos, ele parte de Santos, onde mora, com contêineres-tanques de até 25 toneladas de carga química perigosa. O material sai do porto e tem de ser descarregado até as 8 horas em fábricas de Paulínia, Jacareí ou São José dos Campos. Pesado, o líquido faz a boléia chacoalhar nas curvas da Rodovia Anchieta. A cabine só pára de balançar quando Santos chega à Avenida dos Bandeirantes. Afinal, os congestionamentos impedem que ele ultrapasse os 10 quilômetros por hora. Ali começa o pior trecho da viagem, que corta ainda as marginais Pinheiros e Tietê. Apesar de percorrer o mesmo caminho há 25 de seus 63 anos, Santos não se acostumou ao caos. “Tive de mudar toda a minha rotina, nem vejo mais televisão”, diz. “Mas vale a pena: por volta das 5 horas pego a Bandeirantes um pouco menos congestionada”, conta ele, que antigamente entrava na boléia às 7 horas. “Para evitar atrasos, atualmente 50% dos trajetos que cortam São Paulo são feitos no turno da noite”, afirma Pedro Alberto Nedochetko, gerente-geral de operações da Omnitrans, transportadora na qual Santos trabalha. Como o Trecho Sul do Rodoanel tem previsão de inauguração apenas para 2010, nem quando faz entregas em outros estados Santos se livra da escala em São Paulo. A cidade está sempre em seu caminho, como uma pedra no sapato, ou melhor, no pneu.

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CARGA: MÓVEIS

Com o travesseiro na boléia

Ao menos uma vez por mês, o motorista Romildo Francisco de Moura, da transportadora Granero, pede à mulher que faça sua mala para dormir fora de casa. Não, ele não sai para uma viagem. Em vez de pegar a estrada, Moura dorme dentro de um caminhão Volkswagen para guardar vaga em bairros onde é difícil estacionar durante o dia, como o Itaim. “A partir das 6 horas é praticamente impossível encontrar lugar ali”, diz. Ele tem levado o travesseiro para a cabine com fre-qüência cada vez maior. Ainda precisa se preocupar em não circular dentro do centro expandido antes das 9 e depois das 16 horas. “Já tomei multa por rodar depois do horário permitido”, assume Moura. Como o intervalo nem sempre é suficiente para carregar um caminhão, a solução foi fracionar o trabalho. Grandes mudanças passaram a ser feitas em até três dias. “Por causa disso, nossos custos aumentaram até 20%”, afirma o presidente da empresa, Roberto Granero. Atrasos são inevitáveis. No último dia 11, Moura rodou meia hora para encontrar um lugar onde parar. Seu destino era a Rua Salvador Cardoso, mas só foi estacionar na Professor Artur Ramos, quatro quadras adiante. Sempre que isso ocorre, uma perua é chamada para fazer a baldeação das caixas. “Os edifícios deveriam ser obrigados a ter uma garagem preparada com plataforma para receber os caminhões”, diz Moura. “Isso evitaria trânsito e filas duplas, além de facilitar nosso trabalho.” Em seus treze anos no setor, Moura encontrou um único condomínio com essa estrutura até agora.

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CARGA: AUTOMÓVEIS

Ele despeja mais trinta

carros nas ruas por noite

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O motorista Severino Cabral Nogueira acrescenta, em média, trinta carros por noite à assombrosa frota paulistana de 6 milhões de veículos. Ele dirige caminhões-cegonha há mais de quarenta anos e já perdeu a conta de quantos automóveis transportou de São Bernardo do Campo para São Paulo, trajeto que percorre desde 1963. Apesar de influenciar diariamente o trânsito, ele quase não enfrenta lentidão. Nas ruas, preocupa-se mais com placas de sinalização, galhos de árvores e viadutos – carregado, o veículo atinge 4,8 metros de altura – do que com os congestionamentos. Desde que a lei municipal de carga e descarga noturna passou a valer na cidade, em 2005, os caminhões-cegonha só podem fazer entregas das 22 às 6 horas. De início, a medida causou chiadeira entre os cegonheiros, mas agora eles não querem outra vida. “Quase sempre rodo livre na madrugada”, conta Nogueira. O trânsito só atormenta um pouquinho às quintas e sextas, por causa das baladas. “Sem a mudança de turno, não teríamos condições de trabalhar.” O batente começa às 18h30, quando Nogueira encosta seu Scania 2007 no pátio da transportadora Transzero para carregá-lo. Só volta para casa às 5 da manhã. Ganha entre 30 reais (carros pequenos) e 38 reais (caso das caminhonetes) por veículo transportado. Isso lhe rende cerca de 20 000 reais brutos por mês – os cegonheiros são considerados a elite do transporte de carga. Mas seus custos são altos. Só com combustível, gasta 1 000 reais por semana. O seguro do caminhão (avaliado em 350 000 reais) sai por 10 000 reais anuais. Como os pátios das concessionárias não conseguem abrigar os gigantes de 22 metros de comprimento, a descarga é feita na rua, o que sempre causa algum transtorno ao trânsito. No último dia 11, uma sexta-feira, Nogueira entregou dez automóveis numa única revenda. Cinco minutos depois, duas outras carretas despejaram mais quinze carros. “Sei que, indiretamente, contribuo para os congestionamentos da cidade”, afirma, um tanto constrangido. “Quando estou parado na rua, tento não reclamar, mas nem sempre consigo.”

CARGA: FRUTAS E LEGUMES

Pontos na carteira da sogra, da mãe…

Sem ligar para a placa de proibido estacionar, o motorista José Nelson de Souza encosta o caminhão-baú às 18h30 em frente a um pequeno supermercado na Rua Gravi, no bairro da Saúde. Por cerca de meia hora ele descarrega ali parte dos 8 000 quilos de frutas e legumes que transporta. É a segunda de suas sete entregas diárias e a segunda vez que pára em local proibido. “A carga não pode atrasar e quase nunca há vagas. O que querem que eu faça?”, pergunta Souza, que recebeu quinze multas por estacionar em local proibido nos últimos nove meses (cada uma custa 85,12 reais e rende 4 pontos na carteira). “Como não posso parar de trabalhar, passo esses pontos para a carteira da minha sogra, mãe ou mulher”, diz ele. Dono de dois caminhões, Souza faz entregas das 15 horas à meia-noite para a distribuidora de frutas Benassi, uma das maiores da cidade. Durante 24 horas por dia, 72 veículos da empresa entregam 300 toneladas de alimentos frescos em 180 pontos espalhados pela capital, de hipermercados a quitandas. Ao contrário dos grandes estabelecimentos, as lojinhas não têm garagens ou plataformas para receber a carga sem atrapalhar o tráfego. A maioria das descargas, então, é feita na rua, com um carrinho de mão em meio aos veículos. Resultado: além das multas, os atrasos fazem parte da rotina. Eles afetam 30% dos 200 pedidos diários. Paradas no trânsito, muitas mercadorias nem chegam às bancas de hortifrútis, já que boa parte do comércio só as recebe até as 17 horas.”Toda semana, quatro cargas voltam ao depósito”, diz Luci Benassi, diretora da empresa.

CARGA: CONCRETO

A betoneira não pode esperar

Há quatro anos transportando concreto pelas ruas paulistanas, o motorista Luciano Soares da Silva, da empresa Engemix, tem algumas receitas para se livrar dos congestionamentos. “Não pego as marginais. É garantia de atraso”, diz. Sua preocupação é maior porque a carga tem vida útil limitada. Para respeitar padrões de qualidade, o concreto precisa ser transportado e utilizado em até duas horas e meia após a fabricação. Depois disso, a carga é descartada. Prejuízo para a empresa, que perde cerca de 1 600 reais em cada caminhão cheio jogado fora. “Diariamente, ao menos um carregamento estraga por causa do trânsito”, afirma o líder operacional da usina da unidade do Jaguaré, Carlos Amaro. “Os congestionamentos aumentaram de tal forma que nossos motoristas só conseguem fazer três viagens em uma jornada de oito horas. Antes, eram cinco.” No último dia 15, Silva transportou concreto do bairro do Jaguaré até a Rua da Consolação. No caminho, criticou motoristas desatentos e agentes da CET. “O que mais me irrita no trânsito é quando os marronzinhos decidem controlar os semáforos. Sempre pára tudo”, afirma. Para cumprir o trajeto até as obras do metrô ao lado do Cine HSBC Belas Artes, levou 38 minutos. Mas já chegou a fazer o mesmo caminho com o coração na mão, em duas horas. Com 20 toneladas de carga útil, o caminhão encontra dificuldade no sobe-e-desce da cidade. Em subidas, o concreto tende a ir para o fundo da betoneira. Se o condutor soltar a embreagem de uma vez, há grande risco de o veículo tombar para trás. As manobras também são complicadas. Para o caminhão entrar no canteiro, um funcionário das construtoras que prestam serviço ao Metrô precisa parar o trânsito.

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