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Não funciona

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 18h08 - Publicado em 22 abr 2011, 00h45

Quando dois policiais militares arrancaram de dentro da viatura um rapaz ferido na perna e o executaram com um tiro mortal dentro do Cemitério Parque das Palmeiras, em Ferraz de Vasconcelos, em pleno dia, e depois foram à delegacia de polícia e declararam que “o elemento” armado havia resistido à prisão, o que eles estavam querendo dizer, na sua linguagem tosca e bárbara, é que a Justiça não funciona, que eles e seus colegas costumam ajudá-la.

Quando, denunciado esse assassinato, o governo do maior estado brasileiro declarou que todos os casos de resistência à prisão seguida de morte, que ultrapassam os 500 por ano, passarão a ser investigados pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, o que ele estava querendo dizer, na sua linguagem de subentendidos, é que a Justiça, incluindo a polícia como seu braço investigador, não ignora como essas coisas são feitas, não é garantia de respeito à vida, não funciona como tal.

Quando a metade das tornozeleiras eletrônicas aplicadas aos presos que estavam em regime semiaberto ou que receberam indulto de Natal foi rompida e abandonada na rua nestes primeiros meses do ano, dispositivo este que possibilita à Justiça monitorar e localizar tais presos onde estiverem, o que esses sentenciados estavam querendo dizer, na sua linguagem desafiadora, é que a Justiça não funciona, não os intimida e que só por acaso serão reencontrados e presos. Estavam querendo dizer que esse é hoje o melhor esquema de fuga coletiva da prisão, com toda a segurança, organizado pela própria Justiça, bastando ao prisioneiro fazer um teatrinho de bom comportamento durante o ano.

Quando dezenas de senadores e deputados notoriamente corruptos, afastados do Congresso pela Lei da Ficha Limpa, a qual foi o povo exausto de tanta sujeira quem propôs e fez aprovar antes das eleições do ano passado, com a intenção de impedi-los de se candidatar, quando esses corruptos conseguiram recuperar seus cargos com base em preceito constitucional, o que eles estavam querendo dizer, na sua linguagem esperta e debochada, é que a retidão da Justiça não pode com o seu jogo de cintura e que nem todo poder emana do povo.

Quando empreiteiras de obras públicas e políticos se corrompem mutuamente, gostosamente, mancomunados com lobistas e doleiros, e põem o dinheiro resultante do superfaturamento a se multiplicar nos paraísos fiscais do mundo, e a Polícia Federal consegue provas sólidas da falcatrua de um desses casos, mas advogados espertos encontram meios de invalidar as provas alegando que foram obtidas a partir de denúncia anônima, e o Superior Tribunal de Justiça aceita o argumento, deixando claro que a prova em si, embora sólida, nem sempre vale alguma coisa, o que eles estão querendo dizer, na sua linguagem habilidosa e doutoral, é que o ideal de justiça não funciona em causas bem advogadas.

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Quando partidos políticos, pela voz de seus próceres, admitem ter entrado na falcatrua do caixa dois, e argumentam que “todo mundo faz”, o que estão querendo dizer, na sua linguagem cínica, é que a Justiça não tem mão que os alcance.

Quando juízes embriagados ao volante atropelam e matam cidadãos, sendo que um deles, em Fortaleza, arrastou sua vítima, um motociclista, por 100 metros, e não são autuados em flagrante nas delegacias devido à sua alegada condição de juiz, o que eles estão querendo dizer, na sua linguagem classista, é que a Justiça não funciona igualmente para todos.

E quando uma mulher, sozinha, em lugar ermo como um cemitério em Ferraz de Vasconcelos, viu dois policiais militares arrancar um homem ferido de dentro da viatura, estranhou aquela atitude, ligou do seu celular para o 190 da PM, narrou o que acontecia no exato momento em que acontecia, que estava vendo um dos policiais pegar sua arma, dar um tiro mortal no homem e colocá-lo novamente na viatura, e falando ao telefone ela foi lá interpelar o policial, correndo o risco de morrer, chamou-o de mentiroso quando este alegou que estava prestando socorro à vítima, e comunicou ao 190 a placa e a identificação da viatura, o que ela estava querendo dizer, na sua linguagem indignada e corajosa, é que precisamos acreditar na Justiça, não apenas dizer que ela não funciona, mas ajudá-la a funcionar.

 

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