Cinquenta anos atrás, não havia shopping centers aqui. Dápara imaginar o paulistano sem shopping, hoje? Ou o carioca?O belo-horizontino? Havia, como nas grandes cidadesdo mundo, lojas de departamentos, galerias e ruas de compras.Isso nos bastava antes da epidemia do consumo. Ninguém, absolutamenteninguém, tinha trinta calças jeans. A gente ia aosgrandes magazines, Mappin, Mesbla, Sears; às galerias, OuroFino, Nova Barão, Ouro Velho, Itá, Metrópole; às ruas de compras,umas mais bacanas, outras menos: Augusta, Barão de Itapetininga,José Paulino, 25 de Março, João Cachoeira… E erabom aquele footing, entre um flerte e um sorvete.
Quando cheguei a São Paulo, o Iguatemi ainda estava emconstrução. Uma boa ideia: juntava galeria com loja de departamentose você podia parar o carro lá dentro. No ano quevem será um cinquentão, e hoje existem 53 shoppings na cidade— surgiu mais de um para cada ano desde que o maisantigo foi inaugurado. Ruas e galerias ainda estão aí, mas osshoppings oferecem catorze horas de vida intensa diá ria.
Por que os paulistanos, sobretudo, mas isso vale para osmoradores de todas as capitais, amam tanto os shoppings?Uma possível razão, por mais contraditória que pareça, podeser esta: nos shoppings, o citadino recupera por algumas horasa sua cidadania roubada, reencontra o seu despreocupadoprivilégio de flanar, de vagabundear, de olhar e ser visto, decaminhar desatento, descuidado dos perigos, ainda que caminheagora por ruas de mentira.
Em seus corredores, o citadino que paga impostos não tropeçaem sem-teto, esmolambados, craqueiros e mendigos profissionais.Os impostos, se não fossem desviados, atenderiam a boa parte dosnecessitados e proveriam polícia para quem precisa de polícia.
Não há fealdades, pichações, casas carcomidas abandonadaspelos proprietários e pela prefeitura.
+ Em nome de Deus?, de Ivan Angelo
Não existem flanelinhas a achacar nas ruas os que procuramum lugar para estacionar, numa cidade onde é desumano deslocar-se sem automóvel.
Caminha-se sem a necessidade de olhar onde se pisa, não háa armadilha das calçadas esburacadas, onde mais de uma pessoaquebra por dia um pé, uma perna, um braço, a cara, quando nãotopa com a armadilha malcheirosa de um cocô de cachorro.
Estamos livres dos distribuidores de papeizinhos anunciandoapartamento para vender, pizza delivery, cartomante, plano desaúde, compra de ouro, dinheiro a juros.
Proibidos os cigarros, os que não fumam empinam narinas.
Não há assaltantes, correria, bala perdida, saidinha de banco,sequestro-relâmpago, nem a contrapartida também angustiantede policiais fardados correndo, pistolas na mão, tiros, sirenes, fuzis,cachorro estressando coleira.
Não há — gracias! — carros, buzinas, som de batidão funknos porta-malas.
Os que transitam namorando vitrines nem percebem quetempo faz lá fora. Não há chuva, chuvinha, chuvarada, granizos,enchentes, ventanias, calor, frio, bicadas de guarda-chu vas, sapatosencharcados, pulos fracassados sobre enxurradas, carreirasentre marquises, a coreografia dos temporais, porque o cenárioestá preparado para o bem-estar que facilita a docilidade doscartões de crédito.
Tudo isso sem faltar lanchonete, sorveteria, xaveco e cinema.É o reencontro da cidadania, não é não? Do ir e vir com todosos direitos e garantias. Por isso se diz com frequência: vamospassear no shopping. Virou lugar de passear.