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Jornal da Tarde imprime edição derradeira

Há mais de quarenta anos nas bancas, o diário que inovou no jornalismo brasileiro chega ao fim

Por Daniel Bergamasco (colaboraram com a reportagem João Batista Jr. e Cristiane Bomfim)
Atualizado em 1 jun 2017, 18h02 - Publicado em 1 nov 2012, 21h02

Cria de um dos grupos de imprensa mais tradicionais do país, o Jornal da Tarde surgiu em 1966 com o papel de ser o herdeiro mais atrevido da empresa. Seu objetivo era atrair leitores mais jovens e preencher o vazio das segundas, quando seu “pai”, O Estado de S. Paulo, não circulava (essa tradição só seria abandonada em 1991). Fazendo jus ao nome, o veículo foi concebido como um vespertino e chegava às bancas por volta das 15 horas. Logo de início, o novo título mostrou sua vocação de adolescente rebelde e ousado. Com frequência, suas capas eram surpreendentes, trazendo fotos que ocupavam toda a primeira página. Algumas vezes, as imagens falavam por si sós, sem a necessidade de vir seguidas de manchetes (uma das clássicas, mostrada na página ao lado e publicada em 1982, após a derrota da seleção brasileira para a da Itália na Copa da Espanha, continha apenas o registro da cena do choro contido de um garoto com a camisa do escrete e a data da tragédia futebolística). Os textos acompanhavam à altura o visual sofisticado. Boa parte das reportagens era longa, rebuscada e cheia de descrições de pessoas e de ambientes, feita sob clara influência do chamado new journalism, que defendia o emprego de técnicas literárias nos textos jornalísticos. Obras como Aos Olhos da Multidão, do repórter americano Gay Talese, um dos mestres dessa escola, eram carregadas como bíblias por parte dos 100 membros da equipe do JT. Os autores das coberturas especiais, não raro, passavam meses debruçados sobre alguns temas antes de transformá- los em séries de reportagens para o jornal, batucando nas antigas máquinas de escrever. “Os mesmos artigos eram reescritos dez, vinte, trinta vezes… As latas de lixo ficavam lotadas de papéis descartados”, lembra Alberto Helena Jr., que fez parte daquele time entre 1970 e 1982. Tanto em termos estéticos quanto na linguagem, a publicação reproduzia o espírito inquieto da época na metrópole, quando se destacavam a poesia concretista de Décio Pignatari e o som dos tropicalistas, entre outras coisas.

+ Confira uma seleção de capas históricas do Jornal da Tarde

O JT, entretanto, não conseguiu reverter o prestígio do auge da operação em números de publicidade e de circulação capazes de sustentar o sonho jornalístico concebido por Julio de Mesquita Filho e implementado por seu filho Ruy Mesquita. À medida que alcançava a maioridade, o jornal foi perdendo o viço e começou a definhar, processo que nenhuma das reformas gráficas feitas ao longo do tempo conseguiu interromper. Na última quarta (31), a manchete principal trazia como notícia o fim da publicação. Marcaram época na cidade várias das reportagens elaboradas pela “turma do Doutor Ruy”, como a jovem e festiva redação foi logo apelidada pelos mais comportados e aristocráticos colegas do Estadão (um dos passatempos prediletos da equipe do JT era promover animadas peladas nos corredores durante as madrugadas, para espanto dos vizinhos de empresa na antiga sede, na Rua Major Quedinho, no centro). O jornal nasceu no dia 4 de janeiro de 1966 com a manchete “Pelé casa no Carnaval”. Na festa em comemoração da união entre o rei e a dona de casa Rosemary Cholbi, realizada em Santos, o repórter Moisés Rabinovici entrou de penetra no evento para descrever tudo o que se passava por lá. “Falei ao segurança que era primo do noivo e colou, mesmo eu sendo branco de olhos azuis”, recorda-se ele, que trabalhou exclusivamente ali por treze anos. Outra cobertura famosa envolveu a reportagem sobre o primeiro transplante de coração no país, realizado em 1968 no Hospital das Clínicas pela equipe do cirurgião Euryclides Zerbini. Sob a manchete “Coração trocado vai bem”, a edição chegou às bancas quatro horas depois de o coração de um homem “atropelado por um Volks azul na Estrada de Cotia” começar a bater no peito do boiadeiro João Ferreira da Cunha. Numa apuração que envolveu quase toda a redação, os jornalistas viajaram para Mato Grosso a fim de conhecer a família do paciente e estiveram na África do Sul, a nação pioneira no procedimento. Escreveram poucas páginas, quando tinham material para um livro.

Gráfico - Jornais Populares
Gráfico – Jornais Populares ()
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Desde o primeiro número, o jornal foi preparado para privilegiar o que ocorria na cidade, deixando em segundo plano o noticiário internacional, político e econômico. “São Paulo era sempre a prioridade de nossas capas”, conta Carmo Chagas, editor entre 1965 e 1968. As coberturas esportivas e policiais eram valorizadas. As experimentações marcaram época também no campo dos serviços. Foi o primeiro veículo relevante a dar destaque a roteiros culturais e gastronômicos. “Antes, não se divulgava a programação de restaurantes, por ser considerada propaganda, e não algo importante para o leitor”, diz Ivan Angelo, colunista de VEJA SÃO PAULO e um dos nomes da chefia do periódico. Da mesma forma, ele conta, o restante da imprensa não fazia crítica de TV, por julgar que a televisão era “irrelevante para a cultura nacional”. A publicação foi uma das pioneiras na cobertura do mercado de automóveis, com a criação do bem-sucedido Jornal do Carro, e a abrir espaço para temas como economia doméstica. A quebra de paradigmas que chegava às bancas tinha eco nos bastidores. “Era o primeiro jornal da cidade a dar espaço a uma equipe feminina, antes raridade nas redações”, recorda a líder budista Claudia Batista, conhecida como Monja Coen. Ainda assim, ela diz, a chefia reservava às jornalistas apenas os assuntos “leves”, como cultura. A barreira se rompeu em um dia de folga do repórter policial Percival de Souza, quando um traficante foi assassinado pela polícia em uma favela. “As moradoras do lugar faziam fila para subir em uma escada e conferir o corpo sobre uma pedra: poderia ser o filho de qualquer uma delas”, lembra Claudia. Ela começou o texto com o relato dessa cena, deixando as informações policiais para segundo plano, e conquistou de imediato o respeito dos colegas.

Jornal da Tarde, 31 de outubro de 2012
Jornal da Tarde, 31 de outubro de 2012 ()

Com o jornal pronto cada vez mais cedo, as madrugadas de trabalho na redação iam sendo abandonadas. “O agigantamento de São Paulo tornava impossível distribuir o JT rapidamente por todos os cantos, o que causava prejuízos”, recorda Ivan Angelo. Em 1986, conseguiu o seu maior êxito, uma tiragem próxima dos 144.000 exemplares diários. Após sucessivos adiamentos de horário, passou em 1988 a circular ao mesmo tempo que os concorrentes. De vespertino só sobrou o nome. Apesar de continuar emplacando boas capas, o JT ficou mais parecido com os outros. “Ele se tornou dispensável para muitos leitores, quando eles começaram a encontrar conteúdo semelhante também nas mídias digitais”, diz Rodrigo Manzano, editor de mídia do jornal Meio & Mensagem. Outro problema foi a ascensão dos concorrentes, em particular do Agora São Paulo, do mesmo grupo que edita a Folha de S.Paulo. Entre 2004 e 2011, enquanto a circulação do JT caiu quase pela metade, a do Agora saltou da casa de 80.000 para 96.000 exemplares diários (veja o quadro). “Tentamos de todos os modos revitalizar o título antes de tomar a decisão de encerrar as atividades”, afirma Francisco Mesquita, diretor-presidente do Grupo Estado e primo em segundo grau de Ruy Mesquita. Parte dos 52 funcionários que trabalharam na última edição do JT poderá ser reaproveitada no Estadão, que encartará o caderno de veículos Jornal do Carro. Nesse clima de despedida e expectativa, profissionais das duas redações que dividem o 6º andar do prédio atual, no bairro do Limão, ficaram de pé para aplaudir o título, após a última reunião da chefia. A edição derradeira só foi para a gráfica às 23h15, e as últimas páginas a ser liberadas foram justamente as do retrospecto de 46 anos do jornal, impressas com letras garrafais: “Para ficar na história”. Ficou.

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