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Jardim Pantanal

Região faz parte da várzea do rio Tietê. Os moradores estão sem ver o chão há mais de 20 dias

Por Maria Paola de Salvo
Atualizado em 5 dez 2016, 18h58 - Publicado em 29 jan 2010, 13h52

Munida de galochas até os joelhos, cheguei, no último dia 22, à Chácara Três Meninas, um dos nove bairros do chamado Jardim Pantanal, área de várzea do Rio Tietê invadida no fim da década de 80, na Zona Leste. Durante dois dias, eu e o fotógrafo Agliberto Lima convivemos com algumas das cerca de 3 000 famílias que tiveram sua vida marcada pelo dia 8 de dezembro, data em que o Rio Tietê transbordou e desde então fez com que aquele pedaço da cidade lembrasse realmente o Pantanal Mato-Grossense. Dono de uma das dez casas que ocupam o final da Travessa Laranjeira, o aposentado Ailton Sena Lima me disse que nunca tinha visto nada parecido desde quando se instalou ali, há dezessete anos. Dia desses, ele chegou a pegar um peixe no quarto e a matar cobras na sala. A última vez em que viram o chão seco foi em 7 de janeiro. Quando eu estava lá, uma lâmina d’água escura e malcheirosa invadia as casas. Caminhar por entre as algas e a lama negra que se levantava a cada passo era tatear no escuro. Buracos nas calçadas ficavam imperceptíveis e representavam um convite a quedas.

Nessa terra submersa, quem tem sobrado é rei, e um deles aceitou me hospedar. Desempregado, Fabiano Soares dos Santos e a mulher, a auxiliar de enfermagem Elenilza, a Lena, me receberam com a abnegação com que costumam acudir os vizinhos na hora do aperto. Certa vez, contam que chegaram a abrigar dezoito pessoas nos quatro cômodos do 2º pavimento da casa onde fiquei. O 1º piso estava inteiramente alagado. Lá vi boiar roupas, talheres e colchões. Não sobrou nada. Nem mesmo o inquilino que morava ali. Ele abandonou o lugar, desfalcando em 250 reais a renda familiar mensal de 850 reais. “Perdi muita coisa, menos a esperança”, diz Lena, que me recebeu com pernil, farofa, frango assado, doce de leite e música sertaneja no último volume no aparelho de som. Como os dois, os outros moradores dali também estão escaldados. Acordam no meio da noite para ver o nível da água (medem-no olhando para lajotas e vasos de plantas) e correm a avisar uns aos outros. Disso depende a vida do casal Daniel e Carina Panochia, que dorme com o aguaceiro na metade do pé da cama e toma banho em cima de cadeiras. O Rio Tietê invadiu o quintal deles e as rachaduras começaram a pipocar nas paredes. Por causa disso, algumas famílias já mandaram os filhos pequenos para longe. Além das comportas pregadas na porta de entrada, há quem tenha improvisado pontes para se locomover entre os cômodos.Alguns equilibram eletrodomésticos sobre cadeiras e mesas. Outros saem de casa pelo telhado na tentativa de ir para o trabalho sem lama nos pés. Em vão. As ratazanas — vi duas nos dois dias que fiquei ali — já deixaram de assustar. Adultos e crianças circulam descalços e expostos ao risco de leptospirose, que já infectou três moradores na região.

Depois de um temporal que escureceu a tarde do sábado (23), Lena me convidou para a festa de casamento de um vizinho. Eu fui, com a imagem dos ratos ainda na cabeça e o pavor de que a água suja, já na altura das canelas, entrasse pelas frestas das botas. Sem poderem contar com a garagem do sobrado, que estava alagada, os noivos conseguiram a façanha de acomodar mais de sessenta convidados nos cinco cômodos do 2º piso. Lá pelas 23 horas, quando os pingos ficaram mais grossos, o casal sugeriu que voltássemos. A água havia subido um palmo em menos de duas horas.

Perto da meia-noite, a chuva apertou ainda mais e já alvejava com força o telhado de Brasilit da casa de Lena, que teve de espalhar cinco baldes pelo chão para conter as goteiras da cozinha. Outra gota teimava em pingar ao lado da minha cama. Fui me deitar apreensiva. Evangélica, minha anfitriã tentou me acalmar com uma versão própria de um salmo bíblico providencial para a situação: “Mesmo que as águas se levantem contra você, o Senhor fará com que você caminhe sobre elas”. No meio da madrugada, com o aguaceiro ainda mais forte, era eu que rezava para que a chuva desse uma trégua. De vez em quando, espiava os indicadores de nível. Já não se viam mais as lajotas no chão nem os vasos das plantas. Parecia que a cada hora aquela água imunda se aproximava mais da janela do sobrado. Assim como eu, Fabiano levantou-se várias vezes para examinar a situação. Preocupada, fiquei acordada até as 4 horas, quando, finalmente, a tempestade virou garoa, cinco horas depois de ter começado. Acordamos ilhados. A escada que levava até o sobrado parecia um píer. Mesmo sabendo que as galochas agora eram inúteis, calcei-as para sair dali, no domingo (24), com o lamaçal batendo nas coxas.

No fim da noite de terça (26), enquanto eu escrevia este texto e pensava em quais das muitas histórias deveria colocar no papel — elas caberiam em muitas páginas —, Lena me ligou. Desesperada, contou que a água já chegava ao pescoço. Até o fechamento da edição, apenas o casal que me abrigou e outras duas famílias ainda resistiam ali. Eles se recusam a aceitar o vale-aluguel de 1 800 reais por seis meses oferecido pela prefeitura e deixar o imóvel que jamais poderia ter sido erguido ali.

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