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Já ouvi isso antes

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h46 - Publicado em 18 set 2009, 20h17

Ai, meu Deus. Foi o que pensei quando li um artigo de jornal em que era citada de passagem uma frase atribuí-da a Madame de Staël: “Amor é um egoísmo a dois”. Assustei-me porque havia escrito algo bastante parecido, publicado nesta página de VEJA São paulo, em 2003, na crônica Amantes: “Os amantes são egoístas aos pares”. Curioso é que eu nunca havia lido a senhora de Staël, escritora fugitiva da Revolução Francesa e depois de Napoleão. Gostaria de saber em que contexto se encaixava a frase dela, mas o Google não me ajudou. Ao contrário, complicou! Encontrei foi a citação de uma frase ou um verso do poeta mexicano Amado Nervo, falecido em 1919: “O amor é o egoísmo de dois”. A Staël não era citada. A obra da qual teria sido extraída a frase de Amado Nervo não era indicada. De Nervo, eu, jovem, havia lido e decorado alguns poemas, mas não existia nada parecido. Teria ele lido Madame de Staël? Consolo-me pensando que a ideia contida na frase é quase óbvia, poderia ter-se oferecido virgem a cada um dos três, se não a mais.

Acontece. Há pouco tempo o Cony, Carlos Heitor Cony, dizia na Folha de S.Paulo que o verso do Vinicius de Moraes que fala do amor “infinito enquanto dure” havia sido “chupado do Régnier”. De fato, a ideia que fecha o Soneto de fidelidade, de Vinicius, datado de 1939, é a mesma do francês Henri-François de Régnier, falecido três anos antes: “O amor é eterno enquanto dura” (no livro Ele ou a Mulher e o Amor). Ideia, aliás, que entrou pelo aspirador do frasista peruano contemporâneo Sofocleto: “Amor eterno é o que dura enquanto existe”.

Alguns conceitos circulam em bicos de beija-flores, fecundando jardins. Quando Caetano Veloso cantou “A língua é minha pátria”, passeava pelo jardim do poeta Fernando Pessoa, que havia escrito “Minha pátria é a língua portuguesa”, no caderno de cultura Descobrimento, em 1931. Caetano nunca escondeu a citação. O que ele talvez não soubesse é que o escritor francês-argelino Albert Camus havia dito nos Cadernos, nos anos de 1950: “Tenho uma pátria: a língua francesa”; e que Monteiro Lobato, ao retornar de uma tentativa de morar na Argentina, em 1947, declarou em entrevista à imprensa que se sentira lá como um bicho de goiaba fora da goiaba. “Descobri”, disse. “Pátria é a língua, nada mais.” E, se formos olhar mais para trás, encontraremos no jardim de Joaquim Nabuco, num livro de pensamentos e recordações que ele escreveu e publicou em Paris, em francês, em 1906: “…a pátria se confunde com a língua”.

Quinhentos anos separam uma mesma ideia sobre a volubilidade da mulher: no Cancioneiro de Petrarca, do século XIV: “A mulher é coisa volúvel”; na ópera Rigoletto, de Verdi, do século XIX: “La donna è mobile”, a mulher é volúvel.

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Há vezes em que o DNA das frases é o mesmo, a descendência é direta. O poeta romântico inglês George Byron deixou Don Juan inacabado, quando morreu, em 1824, e lá está a fala, no canto XIV, 12ª estrofe: “No jogo, há dois prazeres ao seu dispor – um é ganhar, o outro é perder”. Trinta anos antes, durante a Revolução Francesa, suicidara-se o escritor Nicolas-Sébastien de Chamfort, cujos Pensa-mentos, Máximas e Ane-dotas foram publicados postumamente. Lá se lê: “Fox, jogador famoso, dizia: ?Há no jogo dois grandes prazeres, o de ganhar e o de perder'”.

Enfim, é complicado. Byron não é qualquer um. Há muitos anos – se a memória não me engana – Millôr Fernandes contava o caso de um plagiário ou plagiado que argumentava que o futuro diria quem se havia apropriado de determinada ideia, e brincava Millôr: “Não seria melhor consultar o passado?”. Pois é. Às vezes o passado não explica.

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