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Filho pai

Por Walcyr Carrasco
Atualizado em 5 dez 2016, 17h46 - Publicado em 24 set 2011, 10h45

Quando eu tinha pouco mais de 20 anos, morava com minha família em um pequeno sobrado de vila. Meu pai era ferroviário. Minha mãe se dedicava a bicos, como vender roupas feitas ou blusas de lã que ela mesma tricotava. Eu estudava e contribuía para parte das despesas trabalhando aqui e ali. Não havia luxos, mas o dia-a-dia era relativamente confortável. Na época eu não seria capaz de avaliar a contribuição que meu pai dera à minha vida. Minha carreira de jornalista e escritor ainda engatinhava. O estímulo para que eu estudasse, os livros que ganhara ao longo dos anos, o curso de inglês, a máquina de escrever, tudo isso me parecia obrigação. Pelo contrário. Eu me ressentia dos modos autoritários de papai. De sua braveza. E também de suas parcas condições financeiras. Observava meus amigos bem de vida, alguns ricos. Achava que ele, pai, poderia ter ganho mais dinheiro. Eu também sentia dificuldade em conversar abertamente. Havia uma espécie de muro entre nós dois.

Sua mãe, minha avó, vendeu a casinha no interior. O dinheiro acabou rapidamente. Ela veio morar conosco. Logo teve um pequeno derrame. Fosse por isso ou por alguma outra doença, perdeu o juízo. De repente, a vovó que adorava fazer doces tornou-se uma pessoa furiosa. Dizia coisas horrendas. Pior. Parecia ter desenvolvido uma sensibilidade especial para atingir o ponto fraco de cada um. Um psicanalista teria feito uma tese com suas frases, tal a súbita argúcia para alardear velhos ressentimentos, mágoas escondidas, tensões ocultas. Não me poupou:acusava-me de não me dar bem com meu pai. Eu me sentia culpado ao ouvi-la, pois acreditava que ele me devia mais carinho, mais cuidados, mais confortos.

Pior era com mamãe. Nunca se deram bem. Fora uma torturada relação entre nora e sogra. Agora vovó levava minha mãe às lagrimas algumas vezes por dia. A situação era ruim. Tornou-se insustentável quando ela passou a ameaçar mamãe fisicamente. Descobrimos uma espécie de estilete escondido entre seus objetos pessoais.

Hoje teria sido possível a contratação de uma enfermeira. Na época, nem podíamos oferecer-lhe um quarto. Eu dormia na sala. Ela dividia um aposento com meu irmão menor. Só havia uma solução. Interná-la em uma casa de saúde.

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Meu irmão mais velho, já casado, escolheu uma que parecia adequada, embora modesta. (Ao longo dos anos seguintes, trocamos de lugar várias vezes, quando constatávamos deficiências.) Todos os netos se cotizaram para pagar a mensalidade. Em um sábado, meu irmão veio com o carro. Vovó pareceu ter percebido alguma coisa, apesar de nada ter sido explicado. Gritou:

— Não quero ir!

Foi preciso alguma firmeza para convencê-la a entrar no automóvel. Meu pai assistiu a toda a cena da sala. Fiquei com ele, enquanto levavam vovó. Fechei a porta. Ouvimos o motor, a partida. Houve um silêncio.

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Papai subiu as escadas lentamente. Senti um nó na garganta. Fui atrás. Ele atirou-se na cama de casal. Chorou. Pela primeira vez em toda a minha vida, eu via meu pai chorar. Um choro convulsivo, com soluços, o peito estremecendo. Debrucei-me sobre ele. Abracei-o.

— Não chora, pai. Não chora!

Permaneci com meu pai nos braços. O muro se rompeu. Percebi que há um momento na vida em que o pai se torna filho e o filho, pai. Agora era minha vez de cuidar dele. Abracei-o mais fortemente, oferecendo reservas de sentimento guardadas. Descobri, então, como era profundo meu amor por papai, e como eu estava disposto a fazer o impossível para que ele não sofresse tanto.

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