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Encontro com a vítima

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h44 - Publicado em 18 set 2009, 20h19

Um morto me acompanha. Faz alguns dias, vi no jornal a notícia e uma foto, na página policial. As fotografias desse tipo de matéria nunca são boas, nem fiéis, nem variadas, a menos que a pessoa seja famosa. Aí os jornalistas procuram as melhores fotos no arquivo. No caso, não; era a ampliação de um retratinho de identidade. Apesar disso, assim que bati o olho tive a sensação de já ter visto a pessoa. Procurei o nome, detalhes da notícia, filiação, cidade de origem. Não, impossível, eu não conhecia aquele tipo de gente: morto em tiroteio com a polícia, tinha cumprido pena.

Comecei a carregar o morto. Assim como ficamos com uma palavra que não vem à cabeça, aquele morto virou minha palavra fugidia. Nome e sobrenome não me diziam nada, cidade de nascimento também não, nem idade. Não tinha o perfil de quem se mete em tiroteios: 43 anos, cabelos lisos pretos aparados, camisa de gola. O pessoal do crime é mais estragado e morre mais cedo.

Tenho andado com meu morto por aí, estivemos no supermercado, já fomos ao cinema, andamos de ônibus. Não é toda hora que me dou conta de que ele está presente. Estou no metrô procurando assunto e de surpresa ele me cutuca: ó eu aqui. Surge no elevador: olá. Leio jornais procurando alguma nota dizendo que parentes foram ao necrotério buscar o corpo, mas o meu morto não tem importância para ser notícia duas vezes.

Estou nisso quando, subindo a rua para ir à padaria, lembro-me de uma voz: “Senhor! Senhor!” E então vem tudo.

Foi ali, na subida, há duas semanas, que eu, muito apressado, ouvi alguém me chamar:

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– Senhor! Senhor!

Voltei-me, e um homem bem-arrumado – calculei que teria uns 45 anos, alto, esguio, rosto liso, barbeado, bonito, cabelo liso começando a ficar grisalho, camisa pólo verde-clara, calça jeans e tênis, tudo limpo – pediu minha atenção e desculpas pelo incômodo. Pensei que procurasse uma informação, mas não: queria ajuda, dinheiro, precisava comer.

Percebeu minha pressa, perguntou se podia me acompanhar enquanto explicava a situação. Avisei que tinha sete quadras para andar rápido, ele disse que tudo bem e foi falando o que a seguir resumo.

Que sabe que é estranho alguém na condição dele pedir, mas está com fome. Procura uma colocação, emprego, qualquer coisa. Não pode andar sujo, cheirando mal, tem de ter uma apresentação. Veio do interior, São Carlos do Pinhal. Cursou até o 4º ano de arquitetura, deu cabeçada, parou. Sabe que no interior a vida é menos difícil, mas não quer voltar: o irmão é uma peste, tem dinheiro, mas o chama de vagabundo, mau elemento, não quer ajudar. Vai provar para o irmão que não precisa dele. Já esteve preso em São Carlos, negócio de droga. Não usa mais. Só fuma, pouco, não tem recurso para mais do que cinco cigarros por dia. Faz qualquer coisa, só quer uma base para começar, aprende tudo com facilidade. Passou no concurso para gari, não quiseram lhe dar o emprego, disseram que era superqualificado para o trabalho, não teria estímulo. Procurou as centrais do trabalhador, alistou-se para qualquer vaga, mas na idade dele está difícil. Nas fichas e currículo põe o endereço de um rapaz do bar onde guarda suas coisas. Pega a bolsa todo dia na hora de ir dormir. Está morando em um albergue, é horrível, roubam tudo. Tem de ir para o banheiro levando todas as coisas. Horrível. Lava a roupa e fica tomando conta até secar ou deixa na área do fundo do bar. Diz que vai a pé para todo lugar, atravessa bairros procurando trabalho, quase sempre com fome. Faz qualquer coisa, só não quer roubar.

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Cheguei ao meu destino, dei-lhe 10 reais e umas dicas. Ao se despedir, não me agradeceu pelo dinheiro, mas pelo ouvido:

– Obrigado por me ouvir.

O fato de ter-me lembrado da pessoa não me libertou do morto, e continuo a carregá-lo como um fardo, como quem leva um país nas costas.

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