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Destino: marginais

Por Matthew Shirts*
Atualizado em 5 dez 2016, 18h12 - Publicado em 2 abr 2011, 00h51

O mito mais forte da cultura popular paulistana é que não se pode falar bem do trânsito. Senão, trava. Pergunte a qualquer taxista. Dez em dez confirmam. Na última segunda (28) tive a oportunidade de testar a validade dessa hipótese. A pedido de VEJA SÃO PAULO, saí com um automóvel da sede da Editora Abril, na Marginal Pinheiros, próximo à Avenida Rebouças, às 17h55, rumo à Ponte Jânio Quadros, na Marginal Tietê. Sou defensor de soluções alternativas de mobilidade urbana — pedestrianismo, ciclismo, ônibus, metrô e até mesmo dirigíveis na ponte aérea —, e a revista quis minhas impressões de um dos pontos de trânsito de automóveis mais intenso em São Paulo (passam diariamente pela Tietê 350.000 carros e pela Pinheiros 180.000), ou, como diria meu filho mais velho, “o puro creme do milho”.

Chamei o motorista Aurélio Sampaio, de 29 anos, para me conduzir (só dirijo socialmente). Vamos em busca do trânsito, expliquei. Ele adorou o projeto. Dava risadas na Marginal Pinheiros, que, àquela hora, andava bem.

Por hábito, respeitamos o tabu e não tocamos nesse assunto, mesmo a 90 por hora. Mas logo depois do Cebolão não aguentamos mais. Aurélio olhou de soslaio para mim e se saiu com “isso não acontece numa sexta-feira…”, confirmando a minha suspeita de que o paulistano tem, no fundo, no fundo, um pouco de orgulho do trânsito de sua — nossa — cidade. Talvez seja sinal de desenvolvimento, como dizia Paulo Maluf.

Mas foi o que bastou para começarem a aparecer as luzes de freio logo à nossa frente. Aurélio acionou o pisca-alerta em preparação para uma parada total, gesto prudente e reconfortante que repetiria diversas vezes ao longo do nosso trajeto. A paralisação só veio à altura da Ponte da Casa Verde.

Apesar de meus 26 anos em São Paulo (sou americano de origem), nunca prestei atenção nas marginais. Meu empenho costuma ser focado em sair delas — no lugar certo, se possível. Sem objetivo geográfico preciso, o cenário ganha detalhes inesperados. Dá para flanar, observar e até curtir (um pouco), mesmo ao lado de um esgoto a céu aberto. O mais fascinante são os vendedores de amendoim e bebidas. De aparência excêntrica, eles aparecem justo no lugar em que o trânsito para. Enquanto este fluía, não vi nenhum — e passei a procurar, a partir de certa altura da viagem. Mas basta brecar para encontrá-los de imediato. Há ali uma pequena prova de que o capitalismo é o mais eficiente e ágil dos sistemas econômicos, pensei, mas talvez não seja o mais justo. Os vendedores deveriam trabalhar para a Companhia de Engenharia de Tráfego. Conhecem como ninguém os pontos empacados.

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Poucos sabem que as marginais foram formuladas por Robert Moses, célebre urbanista responsável por um polêmico redesenho da cidade de Nova York. Em 1950, o então prefeito de São Paulo, Lineu Prestes, contrata uma empresa do político e empresário americano Nelson Rockefeller para ajudá-lo a organizar o trânsito da cidade. Rockefeller, amigo de longa data do Brasil, não tem dúvida e chama o profissional mais festejado da época para a tarefa. Moses, por vezes comparado ao lendário prefeito de Paris Georges-Eugène Haussmann, era favorável às grandes avenidas e contra os transportes de massa. Foi responsável pela criação de suburbs novaiorquinos, como Long Island.

Atravessamos, eu e Aurélio, a Ponte Jânio Quadros, sobre a Marginal Tietê, às 18h42, 47 minutos depois de ter saído da Editora Abril. Segundo o motorista, a construção da pista central na Tietê, a proibição de motocicletas nas vias expressas das marginais e, sobretudo, a inauguração do trecho sul do Rodoanel melhoraram o trânsito.

Enquanto Aurélio explica o impacto das mudanças, à nossa frente um motoqueiro por pouco não se afunda no traseiro de um velho caminhão, levando com ele dois colegas que parecem segui-lo como pássaros em migração.

Às 18h51, paramos de novo. Dessa vez, em frente ao prédio do jornal “O Estado de S. Paulo”. Logo depois leio em uma placa que o valor das obras da Nova Marginal é de 1,3 bilhão de reais. Confesso que nunca entendi o sentido dessa forma de comunicação. É muito? É pouco? Seria mais bem gasto em trens de superfície?

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Ao nos aproximarmos da Ponte do Morumbi, Aurélio liga mais uma vez o pisca-alerta. “Olha ‘Ele’ aí”, diz. Ele, no caso, é o trânsito paralisado. Refere-se a Ele como se fosse um monstro de filme de terror. Após mais uma parada, atravessamos a Ponte Transamérica e voltamos à Editora Abril. O percurso, de 80,6 quilômetros, durou duas horas e cinco minutos em um dia calmo, o mesmo tempo que se leva numa viagem para Bertioga, no litoral.

Mas o problema das marginais não são os dias de calmaria. E sim os outros. Em 2010 elas registraram 51 pontos de alagamento. É aí que o bicho pega.

*Matthew Shirts é redator-chefe da revista NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL, cronista do jornal “O Estado de S. Paulo” e autor do livro “O Jeitinho Americano” (Realejo, 2010).

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