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Cheias de graça

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 15h15 - Publicado em 14 fev 2014, 16h00

Observando o povo indígena, Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada dos descobridores, chamou de graciosas as vergonhas descobertas e de generosa a terra, batizada de Vera Cruz. Inaugurou nesta parte do continente americano o olhar masculino indiscreto. O brasileiro tem esse olhar, resposta à oferta de graças à contemplação.

A seminudez nacional não se oferece apenas no verão. Desabrocha assim que o sol surge mais quente, desde o começo da primavera até bem para lá do verão. O mostrar e o espiar andam parelhos nas praias. Na televisão, a microveste dasfunkeiras é o verdadeiro “no limite”. No toma lá dá cá do mundo do entretenimento, paga-se para ver e recebe-se para mostrar. Nas ruas, saber mostrar-se é a graça, de graça.

As culturas primitivas não dramatizavam a nudez. A naturalidade pelada dos nossos índios encantou os europeus dos descobrimentos. Quando começou a demonização do corpo e a sagração das roupas? Em algum momento remoto da humanidade as roupas mudaram de função: eram proteção contra o mau tempo e se tornaram escudos contra o desejo. As religiões, que preferem outros mistérios, acrescentaram às suas proibições o ato de ver certas partes ou mesmo suas cercanias. Cada cultura criou seus limites; foi-se a primitiva inocência.

No livro bíblico do Gênesis, quando Adão e Eva comem o fruto proibido, lemos: “Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, eles coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si”.

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O Criador procurou por eles e o homem respondeu: “Ouvi tua voz no jardim e, porque estava nu, tive medo e me escondi”.

“Quem te fez saber que estavas nu?”, interpelou o esperto Criador. Sacou que haviam comido o fruto do conhecimento, comunicou-lhes o castigo e fez “vestimentas de pele para Adão e sua mulher, e os vestiu”. A nudez estava ligada à inocência. Foi o que o escrivão Vaz de Caminha percebeu, milênios mais tarde.

No livro do Êxodo há uma proibição engraçada. O Senhor passa a Moisés as leis sobre os altares, e pode-se adivinhar então que as vestes dos homens eram curtas e que o povo hebreu não usava roupas de baixo. Pois diz lá o Senhor em 20.26: “Nem subirás por degrau ao meu altar, para que a tua nudez não seja ali exposta”.

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A ideia de que ver a coisa é meio caminho andado aparece no texto do Levítico. Repetidas vezes o Senhor adverte, no capítulo das relações ilícitas: “Não descobrirás a nudez da mulher de teu pai; é nudez de teu pai. A nudez da tua irmã não descobrirás. A nudez da filha do teu filho, ou da filha de tuafilha, a sua nudez não descobrirás”… No Apocalipse (16.15), João diz que é bem-aventurado “aquele que vigia e guarda suas vestes, para não andar nu, e não se veja a sua vergonha”.

Chamar a coisa pelo nome do sentimento que deveria despertar (vergonha) é recurso literário revelador. Pero Vaz de Caminha usa-o 1 400 anos depois de João, mas já com um tom malicioso, fazendo trocadilho e não escondendo a alma de voyeur: “e sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa”…

Voltamos, então, ao início. Na questão do corpo, o brasileiro, principalmente a brasileira, brinca com os limites. A roupa como que volta à função primitiva de proteção contra o mau tempo. Havendo sol, não há o que esconder.

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ivan@abril.com.br

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