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Um mar de rosa

Efêmera e exuberante, a floração da cerejeira tinge as paisagens, dita uma nova (e mais viva) rotina nas cidades e faz do início da primavera a melhor época para visitar o Japão

Por Michiko Okano, de Tóquio
Atualizado em 1 jun 2017, 17h44 - Publicado em 20 abr 2013, 20h24

Responsável por monitorar tsunamis, terremotos e a possível erupção do Monte Fuji — quieta desde 1707, a mais alta montanha do Japão pode acordar em 2015, segundo a previsão dos geólogos locais —, a Agência Nacional de Meteorologia fez um anúncio desconcertante aos 128 milhões de habitantes do país asiático: neste ano, a sakura, como se chama por lá a época de floração das cerejeiras, começaria mais cedo, a partir de 15 de março. Dez dias antes da média histórica e quinze antes da estação anterior, de 2012, em Kagoshima, no sudoeste do arquipélago. Alvoroçada, a população nipônica teve de adiantar a programação planejada para aproveitar a temporada mais viva do ano. Do sul ao norte do território, obrigatoriamente nesse trajeto para seguir o ritmo da natureza, os japoneses viajam para acompanhar a cascata de brotos se abrindo à medida que a temperatura sobe, a latitude aumenta e a primavera se instala no cotidiano.

O espetáculo, que costuma mexer com a rotinadas pessoas, ganhou contornos inéditos. A disputa, já na madrugada, por um lugar para fazer piquenique regado a saquê à sombra das árvores em flor nos parques das cidades se acelerou — um hábito registrado já nas primeiras fotos do século XX, com as moças e as plantas colorizadas com pincel. Garçons viram seu expediente ganhar horas no fim da noite, pois os lugares fecham mais tarde — sem reserva, é impossível conseguir uma mesa. As crianças ficaram baratinadas ao perceber que os primeiros botões nas árvores nã ocoincidiriam com o início das aulas.

 

A antecipação do fenômeno no calendário é um efeito do aquecimento global. Ao mesmo tempo em que anunciava a floração prematura, o Ministério do Meio Ambiente informou que, até o fim do século, a temperatura se elevará 4 graus centígrados (quase 1 grau a mais do que nos países de latitude mais baixa), com consequências para outro símbolo do país, o arroz, cuja qualidade deve piorar por causado aumento das chuvas nas plantações. Nem por isso a floração — prevista para culminar em 8 de maio, em Sapporo, na Ilha de Hokkaido, ao norte, quatro dias depois do fim da estação no ano passado — deixa de ser um espetáculo cultural e sensorial. Desde a Antiguidade, a sakura está representada na pintura japonesa. O país é dono do maior número de cerejeiras do mundo — e há mais de 200 variedades delas, que oscilam do branco da Shogetsu ao pink da Kanzan. Em um único parque de Nara, município a quatro horas a sudoeste de Tóquio, há 1 700 árvores. Elas são consideradas patrimônio nacional. Na cidadezinha rural e de difícil acesso de Miharu, a milenar Takizakura, que se estende de galho a galho, de leste a oeste, por 20 metros, é visitada como se fosse o Cristo Redentor ou a Torre Eiffel. A florada serviu de metáfora para o amor na mais antiga antologia poética do país, Man’yōshū (Coleção das Dez Mil Folhas), do século VIII. Tempos depois, foi associada à vida, por desabrochar após o inverno, e, simultaneamente, à morte, pela dissolução abrupta das flores. Na culinária, pode enfeitar um prato ou virar ingrediente. O wagashi, típico doce japonês, utiliza a flor ou a folha de cerejeira e pode ser apreciado com o chá de cerejeira, no qual a bela matéria-prima conservada no sal se abre dentro da xícara. Nas lojas, é possível encontrar lenços, papéis de carta, bolsas, sacolas, aventais e meias, entre outras coisas, tudo com estampa de cerejeira. Em outras épocas do ano, sua presença perdura em brasões de família, quimonos, leques e no verso da moeda de 100 ienes.

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Na terceira sakura depois do tsunami que devastou o Japão em 2011, a natureza renasce em todo o seu esplendor. Entre 22 de março e 9 de abril, Tóquio estava coberta pelas encantadoras flores. Delicadas e de tom suave, elas se reúnem em cachos e envolvem a paisagem numa sutil atmosfera feminina. Cada planta pode ter entre cinco e 100 pétalas. As com mais de dez, chamadas de Yae, são as preferidas, pela exuberância e beleza. O mais impressionante de tudo é ver o conjunto da obra. Observar as árvores que margeiam os rios, as sakura namiki, é um passeio cheio de beleza e romantismo. No Rio Meguro, nas imediações das estações Gotanda e Meguro, na capital, existem quase 800 delas em uma extensão de 3,8 quilômetros. Os observadores costumam se deleitar com as camadas cor-de-rosa. O espetáculo fica ainda melhor com o barulho do fluir da água e o aroma da flor que paira, suave, no ar. Há barcos que fazem uma excursão à noite no rio, para que se possa contemplar a vista noturna — o hábito de observar as flores à noite é chamado de yozakura; o de apreciá-las de dia, por sua vez, é conhecido como hanami. Título do filme Hanami, Cerejeiras em Flor (2008), da diretora alemã Doris Dörrie, a palavra apareceu num dos primeiros exemplares da literatura japonesa, Nihon Shoki (Crônicas do Japão), do século VIII. Hoje, o hanami é uma atividade muito popular — às vezes, é difícil aguentar as aglomerações nos lugares indicados, em lista oficial do governo japonês, como os melhores para admirar a vista. Até o século XVIII, no entanto, era privilégio de poucos. O plantio da espécie em localidades urbanas, como o Parque Ueno, de 1873, foi o que disseminou o costume.

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Contemplar uma árvore do tipo em um dia de vento proporciona uma sensação totalmente diferente. Observar a brisa balançar as frágeis flores earrancá-las do galho é uma experiência ímpar. As pétalas dançam no ar até atingir o chão. Com o tempo, formam um tapete cor-de-rosa. O movimento é fantástico e tem um quê de dramático — principalmente à noite, de baixo de uma parca luz. Existe até um termo para retratá-lo: sakura fubuki, ou “nevasca de cerejeiras”. Talvez seja o momento mais marcante da florada. Ao contemplar o espetáculo da sakura, é impossível não associá-lo à força do espírito desse povo. Os japoneses sabem, como poucos, perceber as sutilezas da transformação da realidade externa, bem como as da própria existência. Aprenderam a arte de enxergar encanto no que é transitório. Com isso, a cerejeira, que se desmancha no auge da floração, virou uma perfeita metáfora para a vida.

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