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Caos na USP: greve e ocupação da reitoria

Com baderna e reivindicações oportunistas, parcela de alunos mancha a imagem da maior e melhor instituição de ensino do país

Por [Alvaro Leme, Maria Paola de Salvo e Sandra Soares]
Atualizado em 6 dez 2016, 09h04 - Publicado em 18 set 2009, 20h34

Mais prestigiosa instituição de ensino superior do país e uma das mais concorridas – no último vestibular, houve 142 656 candidatos para 11 682 vagas –, a Universidade de São Paulo (USP) é orgulho e patrimônio dos paulistas. Com 61 cursos cinco-estrelas segundo a última avaliação do Guia do Estudante, publicado pela Editora Abril, ela está bem à frente da segunda colocada no ranking de excelência, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que teve 26 cursos colocados no mesmo patamar. Desde o dia 3, no entanto, a principal universidade do Brasil vive um drama que pode transformá-la em terra de ninguém. Naquela tarde, ela foi atacada em seu coração, a reitoria, quando um pequeno bando formado por cerca de 300 de seus quase 80 600 alunos (ou seja, menos de 0,5% do total) invadiu o prédio e ali acampou, ameaçando permanecer aquartelado até que uma lista com dezessete exigências, boa parte delas oportunista, fosse atendida. Intitulando-se simplesmente membros do “movimento estudantil”, os arruaceiros, cuja ação seria repudiada pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE), destruíram uma porta e depredaram as placas de identificação de algumas salas do edifício. Onde antes se lia reitora, por exemplo, agora se vê apenas uma provocação bobinha: a palavra rei. Na terça-feira (22), quase vinte dias após o início da ocupação, cerca de 200 deles não haviam arredado o pé de lá, indiferentes à fedentina que começava a se espalhar pelos ambientes. O mau cheiro vinha principalmente dos dois banheiros utilizados pelo grupelho, formado em sua maioria por alunos dos cursos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e da Escola de Comunicação e Artes (ECA), que tiveram parte de suas aulas suspensa. Espalhados por um chão ensebado, coberto por pedaços de papel, casais namoravam, rapazes divertiam-se em jogos de carteado e mocinhas pintavam as unhas – alguns deles vestidos com camiseta de microscópicos partidos da esquerda radical, como o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o Partido da Causa Operária (PCO) e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Num canto, alguns compenetrados ativistas preparavam uma cartilha a ser distribuída aos manifestantes. O conteúdo? Indicações do que fazer caso a Polícia Militar, cumprindo uma decisão da Justiça, ocupasse o prédio para desalojar os invasores, o que até as 20 horas da última quarta não havia ocorrido. No dia 16, a reitora da universidade, Suely Vilela, recebeu um mandado de reintegração de posse expedido pelo juiz Jayme Martins de Oliveira Neto, da 13ª Vara da Fazenda Pública. Trata-se da autorização do uso de força policial para a retirada dos rebelados, mas a reitora preferiu, sem sucesso, negociar com eles. O senador Eduardo Suplicy (PT) foi chamado para mediar o debate entre as duas partes, a convite de ambas. Desde sexta-feira (18) ele esteve em contato com os estudantes, por telefone. “Na madrugada da quarta me ligaram dizendo que haviam resolvido só dialogar diretamente com o governador José Serra”, conta Suplicy. “Pediram para tentar agendar uma conversa com ele, o que eu disse que seria praticamente impossível.” Não adiantaram as suas sugestões para que deixassem o prédio. “O movimento radicalizou demais”, avalia o senador. Apoiados pela Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp), que aproveitou para entrar em greve na quarta (23), desrespeitando assim o direito dos alunos que querem estudar, e pelo Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), os alunos reivindicavam principalmente a revogação de cinco decretos assinados pelo governador no início do seu mandato. Segundo eles, as medidas comprometem a “autonomia das universidades públicas”. A mais importante refere-se à criação da Secretaria de Ensino Superior, à qual as universidades paulistas estaduais (USP, Unicamp e Universidade Estadual Paulista, a Unesp) estão agora vinculadas. Antes elas eram ligadas à extinta Secretaria de Ciência e Tecnologia. Com a mudança, o médico José Aristodemo Pinotti assumiu a Secretaria de Ensino Superior. O anúncio da criação do órgão provocou alvoroço por causa de uma série de informações e ações desencontradas protagonizadas pelo próprio governo. Ainda que indiretamente, a decisão vai garantir mais dinheiro para o ensino superior público. Além do montante anual de 9,57% do ICMS do estado que desde 1989 é destinado às universidades (em 2006, isso representou 4 bilhões de reais), elas serão beneficiadas com os 15 milhões de reais que a Secretaria de Ensino Superior pretende gastar com projetos neste ano (veja o quadro). Ao mesmo tempo em que foi nomeado secretário, Pinotti tornou-se presidente do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais do Estado de São Paulo (Cruesp), do qual também fazem parte os secretários de Educação e Desenvolvimento. Cabe ao conselho, por exemplo, definir o porcentual anual de reajuste de salários de docentes e funcionários das universidades. A situação provocou uma saia-justa. Afinal, seria Pinotti, um representante do estado, quem daria o voto de Minerva no caso de impasses em processos de tomada de decisão do conselho. “Percebi o mal-estar e pedi que a presidência fosse dada a outro”, diz ele. O cargo acabou então entregue ao reitor da Unicamp, o engenheiro agrícola José Tadeu Jorge. Foi justamente a partir de 1989, quando por meio de um decreto as instituições públicas de ensino superior do estado ganharam autonomia para gerir seus recursos, que as universidades paulistas não pararam de crescer. Isso é medido, entre outros indicadores, pelo aumento do número de vagas oferecidas nos vestibulares. Há vinte anos eram quase 6 780 na USP, número atualmente 70% maior. Juntas, USP, Unicamp e Unesp são responsáveis por metade da produção acadêmica do país. A declaração dada por Pinotti de que remanejamentos de verbas entre os três grupos orçamentários dessas universidades (pessoal, investimento e custeio) precisariam ser aprovados pelo governador, ao contrário do que acontece hoje, despertou uma celeuma no meio acadêmico. Caso isso se confirmasse, decisões corriqueiras como a de realocar dinheiro previsto para a compra de material na contratação de um novo professor seriam obrigatoriamente submetidas a Serra, burocratizando o processo. O governo se apressou em apagar o incêndio. “O secretário da Fazenda nos enviou um ofício em que garante que não será necessário fazer esse tipo de consulta”, diz Tadeu Jorge. “Houve mal-entendidos”, completa Pinotti. O que o governador exigiu – e conseguiu fazer cumprir – é que a prestação de contas das universidades no Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios (Siafem) passe a ser diária. Hoje a entrada de dados no sistema é mensal. “Até agora as universidades informavam, por exemplo, apenas o montante total gasto por mês com equipamentos”, explica Pinotti. “Futuramente terão de discriminar todas as despesas que fazem, dia a dia.” Por meio dessa ferramenta, disponível na internet, o contribuinte paulista pode acompanhar o uso de seu dinheiro. Nada mais justo. Os estudantes que invadiram a reitoria da USP pegaram carona no debate desses assuntos para apresentar uma longa lista de reivindicações. Sua pauta de dezessete itens inclui eleições diretas para reitor, contratação imediata de professores e funcionários, construção de prédios, reforma de outros, criação de 600 vagas de moradia estudantil, garantia de alimentação nos fins de semana nos restaurantes universitários, liberdade de manifestação política (panfletagem, colagem de cartazes etc.) e cultural (realização de festas e festivais), e por aí vai… “Grande parte da mobilização não tem nada a ver com os decretos do Serra, que são apenas um bode expiatório da crise”, afirma o cientista político Fernando Abrucio, especialista em administração pública. “A solução do conflito é dificultada pela falta de uma liderança clara entre os alunos”, diz o professor da Faculdade de Filosofia da USP Adilson Avansi de Abreu, um dos três nomes cotados para o cargo de reitor na última eleição, da qual saiu vitoriosa Suely Vilela. A reitora se recusa a dar entrevistas até o fim do impasse. Os alunos amotinados também não atendem a imprensa. Jornalistas que conseguiram entrar no QG dos estudantes munidos de máquinas fotográficas só saíram de lá depois que as imagens foram checadas por uma comissão de censores – a preocupação é evitar que retratos dos manifestantes sejam divulgados. Entre as condições impostas para a desocupação da reitoria está a de que nenhum estudante sofra algum tipo de punição. Brincando com fogo, eles são bem diferentes dos caras-pintadas, que em 1992 foram às ruas para protestar contra o governo Fernando Collor mostrando o rosto. Tentam se manter clandestinos apesar de seu endereço conhecido. Que, até a última quarta-feira, era o da USP. Em vez de plástica, rugas de preocupação. Quando se tornou reitora da USP, em 2005, a professora-doutora Suely Vilela calculava que, dali a cerca de um ano e meio, poderia tirar folga para submeter-se a uma plástica nas bochechas e nas pálpebras. Pois foi exatamente o tempo que levou para a farmacêutica enfrentar a maior crise de sua gestão, que já começou com protestos de alunos no dia da posse. Aos 53 anos, mineira de Ilicínea, Suely é divorciada e tem um filho. Vaidosa, gosta de acordar cedo para fazer escova. Quando tem tempo – o que não é o caso nas atuais circunstâncias – faz musculação e esteira. Costuma vestir terninhos de estilo clássico. “Gosto de tudo combinando”, disse a Veja São Paulo, numa entrevista concedida logo depois de obter 154 dos 269 votos na eleição para a reitoria, em 2005. Desde o início da rebelião na USP, ela tem evitado a imprensa. Há quem a considere despreparada e defenda a idéia de que teria sido aprovada por Geraldo Alckmin por, como o então governador, vir do interior (boa parte de sua carreira foi em Ribeirão Preto). Verdade ou injustiça, o fato de a reitora ter declarado gostos culturais pouco comuns entre docentes – ela é fã das canções românticas de Roberto Carlos e de filmes melosos como Uma Linda Mulher – só aumentou as críticas. Na entrevista a Veja São Paulo em 2005, a professora se declarou “pisciana, coração mole”. Isso talvez explique por que, nos primeiros vinte dias da rebelião dos alunos, ela tem se portado como mãe de criança peralta: ameaça, ameaça, mas não pune ninguém. “Minha presença na USP seria uma provocação”Desde o início dos conflitos na USP, o secretário de Ensino Superior, José Aristodemo Pinotti, de 72 anos, tem evitado ir à universidade. “Minha presença lá seria entendida como uma provocação pelos estudantes”, acredita ele, que foi reitor da Unicamp (1982 a 1986) e está acostumado a lidar com alunos rebeldes. “É melhor que eu me dedique aos projetos em razão dos quais fui nomeado.” Com 4,8 milhões de reais garantidos em seu orçamento para 2007 (outros 10,5 milhões foram solicitados ao governo), a Secretaria de Ensino Superior pretende centrar forças em ações que facilitem o acesso de alunos de baixa renda às universidades estaduais. Dos 400 000 jovens que a cada ano terminam o ensino médio nas escolas públicas, apenas 1% consegue ingressar na USP, Unicamp ou Unesp. Ou seja, seus alunos – que não pagam mensalidades – vieram na esmagadora maioria de escolas particulares. “Vamos aumentar o número de vagas nos cursinhos públicos oferecidas nas universidades”, diz Pinotti. “E contratar alunos de seus próprios quadros como professores.” A secretaria estuda também criar uma quarta universidade, a Virtual Paulista (Univip), com aulas ministradas pela internet e pela televisão, em conjunto com a Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura. “É óbvio que não dá para ensinar medicina de longe”, afirma Pinotti, que é médico ginecologista. “Mas cursos mais teóricos podem funcionar muito bem nesse formato.” Dia das Mães na reitoria Assim que tomaram a reitoria, os estudantes montaram uma agenda de debates e programas culturais – teve até uma versão uspiana da Virada Cultural, no último dia 5. No Dia das Mães, aconteceu uma comemoração pouco comum entre movimentos estudantis: algumas famílias passaram a data no local da invasão. Foi o caso dos parentes de Alba Marcondes, de 21 anos, aluna do 2º ano de letras, que só vai para casa, no Paraíso, para buscar roupas. “Durmo aqui na USP desde o início da ocupação.” Alba tem um perfil diferente do da maior parte dos alunos da USP – estudou algumas séries em escolas públicas, enquanto 76% de seus colegas vêm de colégios particulares de elite. Participa da Comissão de Comunicação, uma das inúmeras equipes em que os alunos se dividiram para administrar sua bagunça. Cada turma tem de vinte a trinta integrantes, que se revezam entre si. “Quem é da equipe de alimentação num dia pode em outro estar na de negociação”, explica a estudante. Esse rodízio é uma das características mais marcantes do atual movimento estudantil, a ausência de uma liderança definida. Todo mundo manda e ninguém manda. O que motiva Alba a ficar na ocupação? Com o ar idealista comum aos seus colegas, aparentemente alheios ao fato de que policiais armados poderiam acabar com a baderna a qualquer momento, ela responde. “Estou aqui porque quero uma universidade melhor para os meus filhos.” Na ponta do lápis. Alguns números da USP: 80 589 alunos (60% deles na graduação); 1,9 bilhão de reais foi o orçamento executado em 2005; 5 222 professores, que recebem salário inicial de 5660 reais (professor-doutor), 6748 (professor associado) e 8136 (professor titular) para quarenta horas de trabalho semanais; 142 656 inscritos para as 11 682 vagas do vestibular 2007, o que equivale à média de 12,2 candidatos por vaga. Os cursos mais concorridos no último exame foram publicidade e propaganda (45,74 candidatos por vaga) e jornalismo (44,75); 7 campi (São Paulo, São Carlos, Bauru, Lorena, Piracicaba, Pirassununga e Ribeirão Preto); 214 cursos de graduação e 563 programas de pós-graduação; 39 bibliotecas, que recebem por ano 3,9 milhões de usuários, atraídos pelo acervo de 6,9 milhões de volumes e 15 295 funcionários.

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