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Bolinhos de chuva

Por Walcyr Carrasco
Atualizado em 5 dez 2016, 19h44 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

É inevitável. Quando chega o Dia das Mães, penso também na minha avó. Existe um dia da avó, eu sei. Mas não consigo separar os sentimentos. Tive uma ligação muito forte com minha avó paterna. Chamava-se Rosa. Depois de tanto tempo, ainda sinto um calor no peito quando penso nela. Imigrante espanhola, nasceu no século XIX. Veio para cá no porão de um navio, para colher café. Casou-se quase menina. Fez de tudo para ajudar na manutenção da família. Pegou a enxada. Montou uma pensão e cozinhava, ela própria, para dez, quinze hóspedes. A custo, comprou sua casinha no interior de São Paulo, em Bernardino de Campos.

Tinha adoração por nós, os netos. Eu passava as férias escolares com ela. Era mulher das antigas. Plantava sua horta, criava galinhas. Cozinhava maravilhosamente. Toda a família costumava se reunir no Natal. Ficava dias na cozinha, fazendo rosquinhas, bolos, sobremesas. Inclusive o pudim com queijo que ainda é meu doce predileto. Torcia o pescoço de galinhas. A mesa natalina era repleta: pernil de porco, cabrito, frangos assados, arroz com miúdos. Vovó! Chamava-me com seu sotaque carregado de “formingon”, devido a minha gulodice por doces. Sempre havia um bolo no forno. Ou fazia bolinhos de chuva.

A receita anda em desuso. À base de farinha e açúcar, fritos na gordura, os bolinhos de chuva são uma bomba calórica. Mas perfeitos para serem tomados com café, bem quentinhos, derretendo na boca! Ser boa cozinheira era um de seus maiores orgulhos. Minha mãe me incentivava:

– Peça para sua avó fazer um doce, que ela fica contente!

Enviuvou. Os filhos se mudaram da cidade. Vendeu a casinha e veio para São Paulo. Em pouco tempo, comeu o rendimento e o capital. Também, resolveu a família, já não podia ficar sozinha. E se caísse? Ainda insisti:

– Ela gosta de ser independente!

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Combinaram que ela passaria um tempo com cada um dos três filhos. Mas, com a casa reduzida a uma mala, ela decaiu rapidamente. Um dia ainda pedi:

– Vovó, faz um pudim!

Ela foi para a cozinha, feliz. De noite, comi o doce. Delicioso. Vovó não correspondeu aos elogios. Minha mãe me segredou, quando estávamos sozinhos:

– O que ela fez desandou. Eu fiz outro, escondido, para ela pensar que tinha acertado. Acho que desconfiou.

Sofri. Minha avó não conseguia mais fazer pudim! Nem bolinhos de chuva!

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Seu estado se alterou bastante. Foi preciso levá-la para uma casa de saúde. Na tarde em que ela partiu, no carro de meu irmão, acompanhada por minha mãe, papai se atirou na cama, chorando. Eu o abracei. Foi a única vez que o vi em lágrimas. E foi quando descobri que todo filho um dia oferece aos pais o abraço que antes recebeu.

Dois anos depois, minha mãe a resgatou da casa de saúde e a levou para morar na praia. Já confundia as épocas, não dizia coisa com coisa. Viveu com meus pais mais seis anos. Um dia partiu. Apesar da tristeza, tivemos também uma sensação de alívio, porque o corpo se transformara em uma casca, e muitas vezes era tomada por desesperos que ela mesma não compreendia.

Fui o primeiro a chegar ao velório, e chorei muito. A certa altura, durante a noite, uma roda se formou. Um dos irmãos de mamãe começou a fazer piadas, como acontece nessas ocasiões. Eu respondi em voz alta:

– Se veio aqui para fazer piadas é melhor ir embora. Respeite o nosso sofrimento.

Foi um constrangimento geral. Ganhei fama de mal-educado.

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Mas era o mínimo que eu podia dizer depois de todos os bolinhos de chuva que ela me fez.

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