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Adoniran Barbosa – Um centenário, ele continua atual

Apesar das transformações da cidade, muito do que ele retratou ainda é cotidiano em São Paulo

Por André Spera
Atualizado em 5 dez 2016, 18h59 - Publicado em 18 jan 2010, 18h42

Grandes artistas, seja na música, no cinema, artes plásticas, etc, têm algo que toda a técnica do mundo jamais vai suprir. Eles refletem o mundo de seu tempo. Não em grandes letras homéricas, não em sagas monstruosas ou em telas de cinco por dez metros. São suas pequenas jóias, espalhadas em trechos simples que refletem aquela migalha de pensamento genial.

Este ano o sambista Adoniran Barbosa completaria 100 aniversários. Em suas composições, mais do que sua persona cômica e singela, ele ilustrou com maestria não só os bairros da capital, mas também o jeito do povo da cidade. Brás e Bixiga são por excelência os dois pontos da cidade mais associados ao sambista. É simples entender porque, já que eram dois grandes centros populares da cidade, desde então. Os trabalhadores, os imigrantes e os “maloqueiros” não eram simplesmente personagens inventados pelo sambista. Neste trecho, publicado no livro-agenda Adoniran Barbosa, lançado pela editora Anotações com Arte, ele explica de onde surgiu a ideia da canção Saudosa Maloca. Mato Grosso e o Joca realmente existiram:

“Onde hoje é o Cine Áurea era o Hotel Albion, que acabou sendo demolido. O prédio ficou abandonado por uma porção de tempo. Uns e outros sem compromisso, que pra ganhá pra cachaça e pro sanduíche faziam biscates nas férias, lavavam carros ou eram engraxates, de noite se escondiam lá dentro, pois não tinham onde dormir. Eu conhecia todos eles – o Mato Grosso, o Joca, o Corintiano. Eu visitava eles, junto com o Peteleco [cachorro de Adoniran], naquela moradia. A gente batia papo, se entendia e se queria muito bem. No dia que começou a demolição do casarão, cheguei lá e num vi mais nenhum dos meus amigos. Sumiram, fiquei triste e tive a ideia de fazer um samba pra eles”.

Hoje, não há quem negue a importância do sambista. Como um clássico que é, sua obra parece atual.

 

São Paulo nas letras de Adoniran

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São Paulo continua sofrendo com as chuvas, por exemplo, como ele ilustra na canção Agüenta a Mão, João (Adoniran Barbosa/Hervé Clodovil)

“Não reclama

Contra o temporal

Que derrubou teu barracão

Não reclama

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Guenta a mão João (…)

Não reclama

Pois a chuva

Só levou a tua cama

Não reclama”

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Em Praça da Sé, ele fala dos camelôs fugindo dos fiscais da prefeitura e nota como a cidade estava mudando.

(…)Era uma gostosura

Ver os camelô

Correr do fiscal da prefeitura

É o progresso

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É o progresso

Mudou tudo

Mudou até o clima(…)

Os sambas simplesmente representavam o universo do compositor. Se alguns o consideram um cronista, isso vem pelo fato de que as pequenas situações cotidianas servirem de fonte. Em 1956, antes de um acidente de trânsito ter inspirado John Lennon a escrever a primeira parte de A Day in the Life, de 1968, uma notícia do jornal já havia ajudado Adoniran a compor. A Iracema da vida real foi atropelada na Rua da Consolação, que vai dos Jardins até o centro (hoje em dia “antigo”) da cidade. A respeito dessa alteração ele teria dito “foi o primeiro samba errado que eu fiz”, se referindo simplesmente ao que de fato é uma licença poética. É um samba que trata de morte no trânsito. Mais uma vez, tema atual.

“Iracema, eu sempre dizia

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Cuidado ao travessar essas ruas

Eu falava, mas você não me escutava não

Iracema você travessou contra mão”

Não tem erro. Bastam os primeiros acordes de Trem das Onze e todo mundo sabe a letra. Uma das versões mais famosas, do Demônios da Garoa tem a levada sincopada que tornou a música famosa. Mas, assim como a maioria dos sambas de Adoniran, é um tema triste, com melodia sinuosa. Entre o deboche, com seus personagens que fizeram sucesso no rádio entre as décadas de 40 e 50, surge o Samba do Arnesto. Composto com seu parceiro Alocin (o contrário de Nicola, seu nome real, que morava na Mooca) o Brás, é o cenário. Curiosamente, Adoniran jamais morou no Brás, ou no Bixiga. Viveu grande parte da vida na Rua Aurora (na República, próxima à Praça da República) e depois, no final de sua vida, na Cidade Ademar, bairro que homenageia o ex-prefeito Ademar de Barros, um dos que mais contribuiu para a descaracterização da São Paulo que Adoniran conhecia. Esse “progresso” também não escapou de suas letras, como nesta, que fala do viaduto Santa Ifigênia:

“Venha ver

Venha ver eugênia

Como ficou bonito

O viaduto santa efigênia

Venha ver (…)”

Bazares (Adoniran Barbosa/Evando do Bandolim) serve como uma vitrine do universo de Adoniran, que quando mais jovem havia trabalhado como entregador de vendas em uma loja atacadista de comerciantes árabes na 25 de Março. Era nesses percursos como entregador que ele, andando por toda a região central da cidade, tentava entrar em contato com as rádios e os artistas que se apresentavam nelas. Se era em um bar ao lado de uma rádio, seu drinque era a pinga com limão, que só trocou quando pôde bancar uísque Old Eight:

Comprei um quimono

No japão (Galvão Bueno)

Fui depois ver Israel

Zé Paulino no sereno.

25 de março

Mão-de-obra da Turquia

Levanta-se muito cedo

Quando ainda não é de dia

Mais um aqui pro fregueis,

Divinha que tem na mão

Aqui caro sai barato,

E tem até prestação.

Na penha, na Oriente

Na Lapa ou Aclimação,

Existem muitos bazares

Que são uma tentação.

No Cambuci, no Ipiranga,

Ou na Vila Mariana,

Todos tem conta corrente,

Durante toda semana.

Mais uma vez, o progresso teria um papel de antagonista na carreira e vida pessoal de Adoniran na passagem que marcou o declínio da era do rádio. O aumento de popularidade das televisões, os novos gêneros musicais, como o rock, vindos de fora do país a partir da década de 60, diminuíram a visibilidade do artista, que passava por problemas financeiros.

Até episódios com as autoridades chegaram a acontecer. Em nota policial de 1961, é citado inclusive seu endereço completo – Rua Aurora, 579, apto 22. No mesmo dia, uma briga e duas desavenças no trânsito. Seu nome artístico foi grafado como “Adoniram” e seu sobrenome real como “Robinato”. Nota-se a falta de importância que os jornais e a cultura de elite da época davam ao sambista.

Assim como Cartola, ele seria redescoberto a partir dos anos 70, chegando a gravar com Elis Regina uma edição do Fino da Bossa. Não à toa, Elis se tornaria, no final de sua vida, uma de suas intérpretes favoritas. João Rubinato, o Adoniran Barbosa, morreu em 1982 aos 72 anos, vítima de um enfisema pulmonar. Seu estilo único, seus personagens e histórias, hoje, fazem parte da memória cultural da cidade. E do país.

 

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