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A história de policiais militares mortos em serviço

Eles puseram a vida em risco e morreram patrulhando as ruas de São Paulo. Para suas famílias, o desafio é descobrir como seguir em frente

Por Fabio Brisolla
Atualizado em 6 dez 2016, 09h05 - Publicado em 18 set 2009, 20h28

Armados com metralhadoras e fuzis, quinze integrantes de uma quadrilha roubaram um banco em Guarulhos às 14 horas do último dia 7. Uma troca de tiros começou na saída da agência e os bandidos escaparam em cinco carros, dando início a uma perseguição cinematográfica que envolveu dezenas de viaturas policiais. Os fugitivos seguiram em direção à Zona Norte da capital e, em questão de minutos, chegaram às ruas do Tremembé, bairro monitorado pelo soldado Ailton Tadeu Lamas havia 22 anos. Durante o cerco, ele encontrou dois bandidos que tentavam invadir uma casa e houve confronto. Lamas feriu um deles, mas acabou atingido por disparos de AR-15 e morreu ao chegar ao Hospital da Polícia Militar, no Tucuruvi. Vinte e quatro horas depois, três salvas de sete tiros de festim iniciaram a cerimônia no mausoléu Os Heróis da Polícia Militar, no Cemitério do Araçá. Após o discurso do comandante do 43º Batalhão da PM (a unidade de Lamas), veio a bênção do capelão da corporação. Até então estendida sobre o caixão, a bandeira do Brasil foi dobrada e entregue pelo secretário da Se-gu-rança Pública, Ronaldo Marzagão, a Eliane Soares Lamas, mulher do soldado. No instante seguinte, o clarim soou o toque de silêncio. Lamas foi o 272º homem enterrado com honras militares no mausoléu, criado em 1969 em homenagem aos policiais mortos em serviço. As perdas contabilizadas, no entanto, são maiores, já que algumas famílias de PMs dispensam as honrarias e optam por funerais restritos aos parentes e amigos.

Dos 49 policiais militares assassinados entre janeiro e setembro deste ano na capital, nove estavam a trabalho. Em 2007, foram treze mortes nas mesmas circunstâncias, um índice menor, por exemplo, que o registrado no Rio de Janeiro (23 mortes). “Esse número ainda pode ser reduzido pela metade”, avalia o coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública. Na cidade de Nova York, o departamento de polícia somou seis mortes no ano passado.

Por Lamas ser uma figura popular entre os 22 000 policiais militares em atividade na capital (são 93 000 no estado), sua morte chocou os colegas. Conhecido como o “parteiro da PM”, chegou a ser homenageado por ter ajudado no nascimento de catorze bebês. No mês passado, auxiliou o parto da menina Ana Carolina, a 15ª criança, em uma casa humilde no Tremembé. “Ele dizia estar preparado para dar a vida pelo seu trabalho”, lembra a viúva, Eliane, mãe de Átilas, de 20 anos, e Aline, de 13. Apesar de poder contar com pensão vitalícia de 1 600 reais, correspondente ao salário integral de Lamas, a dona-de-casa vai ter seu orçamento reduzido, já que o soldado complementava a renda familiar como segurança na farmácia do bairro – estima-se que metade dos PMs da cidade faça bicos.

Mesmo com os baixos rendimentos (o piso salarial de um soldado em início de carreira é de 1 240 reais, sem contar os adicionais))e a árdua rotina, os homens e as mulheres de farda se colocam diariamente na linha de fogo entre a sociedade e os criminosos. A possibilidade de um enfrentamento nas ruas é grande e desperta apreensão. Apenas neste ano, 153 policiais saíram feridos antes do encerramento do expediente. Para a família dos policiais mortos há uma indenização de 100 000 reais, independentemente da patente. É comum os que sofrem algum tipo de lesão após uma ocorrência também reivindicarem indenizações. Das 102 concedidas desde o início do ano, um gasto de 2,6 milhões de reais para os cofres do governo, 89 beneficiaram profissionais feridos. “A seguradora calcula o valor a ser pago de acordo com a gravidade da lesão apresentada no laudo médico”, explica o capitão Cássio Roberto Ferraz, do Centro de Assistência Social e Jurídica da Polícia Militar.

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O pagamento das indenizações por morte, de acordo com a PM, é efetuado em três meses. O comerciante Eliel Alves da Silva, de 22 anos, filho da soldado Ana Helena Bueno de Paula, do Comando de Policiamento Rodoviário, esperou bem mais. Sua mãe morreu em janeiro na Rodovia Anchieta durante uma ronda. A motocicleta da ex-integrante do Batalhão de Choque foi atingida por uma carreta que descia a serra. Sem dinheiro para pagar a faculdade de publicidade, ele abandonou os estudos. Recém-inaugurou uma lanchonete no Tatuapé com os 50 000 reais recebidos de indenização (a outra metade foi para sua irmã mais velha). “Fiquei completamente perdido com a ausência da minha mãe”, diz ele. “Agora espero ganhar dinheiro suficiente para voltar a pagar minha faculdade e retomar a minha vida.”

Além de terem de lidar com o sofrimento da perda dos entes queridos, os familiares precisam administrar essas questões burocráticas. O soldado Leandro Martins de Matos, do 25º Batalhão, em Ita-pe-cerica da Serra, ajudava nas contas de casa. Com três anos de polícia, o rapaz morava com a mãe, Maria Divina Batista, em Gua-rapiranga. “Quando vi uma viatura parar na frente da minha casa, entrei em choque”, recorda ela. Naquela manhã de domingo, em maio do ano passado, Divina soube que o filho fora baleado ao intervir em uma briga durante um rodeio realizado na região de seu batalhão. Sete meses após a morte do soldado, ela recebeu os tais 100 000 reais. Para ter garantida a pensão, precisaria comprovar que era dependente do filho. “Não há uma declaração provando que o Leandro pagava as despesas da casa porque ele não planejava morrer”, reclama ela, que tem crises diárias de choro. “Não desejo essa dor nem para a mãe do assassino do meu filho.”

O sargento Marcos Rodrigues Ruiz enfrenta o mesmo vazio. Tenta se adaptar à ausência do filho de criação Edson Francisco de Lima Júnior, soldado do 22º Batalhão da PM, morto aos 22 anos após uma troca de tiros dentro de uma favela no Jardim Miriam, em julho. Estava ali numa blitz para identificar traficantes de drogas quando sua equipe foi atacada pelos bandidos. Lima Júnior levou dois tiros, um no pescoço e outro na perna direita. O soldado ficou em coma por vinte dias, mas não resistiu. Emocionado, Ruiz conta que chegou a sugerir ao filho que entrasse para o Corpo Musical da Polícia Militar, já que desde cedo ensinou trompete ao garoto. Não convenceu. “Imagine que o sonho dele era ser policial da Rota.”

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O soldado Ricardo Vinicius Bueno Martins, do 11º Batalhão da PM, também tinha outra aptidão, mas preferiu seguir carreira militar. Era um talentoso jogador de rúgbi. Chegou a disputar partidas pela Seleção Brasileira Juvenil da modalidade. Em maio do ano passado, quando ia para a residência dos pais, levou um tiro na cabeça ao tentar interromper um assalto na Praça da Sé – também é considerado morte em serviço quando o policial está indo ou voltando para casa. Tinha 25 anos. “Estávamos sempre juntos, dentro e fora de campo”, diz o irmão Fernando, um ano mais novo. Na cerimônia no Cemitério do Araçá, a família distribuiu aos amigos um folheto com trechos de uma oração conhecida entre os patrulheiros da PM: “Dai-me, Senhor, tua graça para que eu possa honrar minha farda e renovar diariamente perante Vós o juramento de defender a sociedade, mesmo com o sacrifício da própria vida”.

Quatro tiros de fuzil no policial parteiro

Era noite do dia 4 de outubro. Ao parar em frente à residência na Rua Bitencourt da Silva, no Tremembé, o soldado Ailton Tadeu Lamas desceu apressado da viatura com sua maleta de primeiros socorros. Deitada na cama, a dona de casa Laudicéia Santos já ouvia o choro de sua filha Ana Carolina, que acabara de nascer. Lamas chegou a tempo de cortar o cordão umbilical e embalar a pequena em um lençol branco. “Ele levou a menina rapidamente para o Hospital do Mandaqui”, lembra a mãe. Emocionado, o soldado comemorou em casa com a mulher, Eliane, a participação no 15º parto em 22 anos de carreira na Polícia Militar. “Ele preferia sempre trabalhar na rua e gostava de conversar com as pessoas”, conta Eliane. Um mês depois do nascimento de Ana Carolina, outra ocorrência, também no Tremembé, despertou-lhe preocupação. Pelo rádio, soube que uma quadrilha havia roubado um banco em Guarulhos e seguia para a Zona Norte. Ao chegar à Rua Alberto Pierrotti, encontrou dois integrantes do bando invadindo uma casa. Ele e seu parceiro trocaram tiros com os bandidos. Um foi atingido e o outro reagiu com disparos de fuzil AR-15. Lamas tomou quatro tiros, um deles no tórax. Foi socorrido, mas morreu ao chegar ao Hospital da Polícia Militar.

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Separados por tragédia na Anchieta

Ana Helena Bueno de Paula gostava de dirigir. Em vinte anos de carreira na Polícia Militar, recebeu elogios pela perícia sobre duas ou quatro rodas. Conduziu viaturas quando esteve no Batalhão de Choque e, desde 2004, circulava nas motocicletas do Comando de Policiamento Rodoviário monitorando o trânsito nas estradas. Em janeiro, ela descia a pista sul da Anchieta quando foi atingida por uma carreta. Morreu na hora. “Soube por telefone do acidente ocorrido com minha mãe”, lembra Eliel Alves da Silva, que passava férias em Peruíbe, no Litoral Sul. Ao voltar a São Paulo, ele encontrou o trânsito parado na Anchieta. “Ali tive um pressentimento ruim”, conta Silva. O rapaz de 22 anos aprendeu a gostar de motos com a mãe. “Nós sempre andávamos juntos.” Com a ausência de Ana Helena, ele deixou a casa alugada onde moravam e abandonou o curso de publicidade por falta de dinheiro. Só agora está conseguindo se recuperar. Usou metade da indenização de 100 000 reais recebida oito meses depois da morte de Ana Helena para montar uma lanchonete no Tatuapé. A outra parte ficou com a irmã, já casada, que vive fora do Brasil. “Espero ganhar dinheiro para voltar a es-tudar.” Por ser maior de 21 anos, ele não tem direito a pensão.

Orquestra da PM? Não, ele queria a Rota

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Há quatro meses, o trompete do sargento Marcos Rodrigues Ruiz está guardado. Com os olhos marejados, ele conta que ensinou seu filho de criação, ainda menino, a tirar as primeiras notas no instrumento. Após alguns anos, Edson Francisco de Lima Júnior montou uma banda e fez shows na noite paulistana até decidir ser policial. Em julho, já como soldado do 22º Batalhão da PM, na Zona Sul, o rapaz de 22 anos foi atingido em uma troca de tiros no Jardim Miriam. Numa blitz para prender traficantes, ele foi atacado por bandidos no acesso a uma favela. Lima Júnior levou dois tiros, um no pescoço e outro na perna direita. “Ele chegou consciente ao hospital, mas a situação foi se agravando”, afirma Ruiz. O soldado morreu depois de vinte dias em coma. Apesar da perda, o pai reconhece que o filho estava feliz por ter a oportunidade de patrulhar as ruas. “Cheguei a sugerir que ele entrasse para o Corpo Musical da Polícia Militar”, diz. “Só que o sonho dele era ser policial da Rota.”

Crises diárias de choro

Quando viu a viatura parar em frente à sua residência, naquele domingo de maio, em 2007, a dona-de-casa Maria Divina Batista ficou em estado de choque. “Comecei a gritar antes mesmo de ouvir o que o oficial tinha a dizer”, conta. O militar perguntou se ela era a mãe do soldado Leandro Martins de Matos e informou que o rapaz fora baleado em uma operação. “Senti naquele momento que meu filho estava morto.” Chegando ao hospital, recebeu a confirmação do médico e pediu para ver o corpo. “Ao fazer um carinho em sua cabeça, descobri o ferimento”, lembra, com lágrimas nos olhos. “Não consigo esquecer essa imagem.” Martins, que estava na polícia havia três anos, foi baleado com um tiro na nuca ao intervir em uma briga entre os freqüentadores de um rodeio no município de Itapecerica da Serra, região do 25º Batalhão. O rapaz, de 22 anos, morava com a mãe e dois irmãos em Guarapiranga, na Zona Sul. Maria Divina entrou em depressão e passou a ter crises diárias de choro. “Não desejo essa dor nem para a mãe do assassino do meu filho.”

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Tiro na cabeça ao tentar impedir assalto

Em São Paulo, Ricardo Vinicius Bueno Martins trabalhava como soldado no 11º Batalhão, no Centro. Nos dias de folga, costumava voltar a São José dos Campos para assumir o posto na equipe de rúgbi da cidade, ao lado de seus colegas de infância. Com alguns deles, Martins jogou inclusive na seleção brasileira juvenil da modalidade. Ele começou a praticar o esporte em 1997 e acabou levando ao campo o irmão Fernando, companheiro em muitos jogos pela equipe de São José. Em 26 de maio do ano passado, Martins saiu do batalhão logo pela manhã planejando ir à rodoviária do Tietê. Pretendia pegar um ônibus para chegar ao jogo marcado no período da tarde. Na Praça da Sé, a poucos metros da estação do metrô, ele presenciou um assalto a uma lanchonete. Deu voz de prisão ao ladrão, que reagiu sacando a arma. Martins atirou antes e acertou o bandido. Porém, outro assaltante surgiu por trás e fez um disparo, atingindo o policial na lateral do colete à prova de balas. Ao cair ajoelhado, Martins recebeu um tiro na cabeça. No hospital, ele ainda resistiu em coma por onze dias. A bandeira entregue à mãe no mausoléu da PM passou para as mãos do irmão Fernando. “Neste ano fui campeão sul-americano jogando pela seleção brasileira e a bandeira hasteada na hora do hino foi a dele.”

Dezesseis concursos até entrar na PM

Marcos Marcelino de Oliveira era persistente. Queria ser policial, mas tinha dificuldade de conseguir aprovação nos exames de admissão. “Ele chegou a fazer dezesseis vezes a prova, até passar”, conta a vendedora de carros Ângela Araújo Marcelino. Nos fins de semana, Oliveira costumava cuidar dos três filhos (o mais velho, de 8 anos) enquanto a mulher realizava os plantões de venda na concessionária de veículos. “As crianças sentem muito a falta do pai.” Quando finalmente foi aprovado no concurso, em fevereiro de 2006, com direito a festa organizada por Ângela, assumiu o posto de soldado no 5º Batalhão da PM, no Parque Novo Mundo. Permaneceu ali até a sexta-feira 18 de julho. Durante a madrugada, a patrulha de Oliveira identificou um veículo suspeito na Rua Alfredo Borges Teixeira, no Jardim Guancã, na Zona Norte. O soldado decidiu revistar um homem parado na rua, ao lado do carro, mas não encontrou nada errado. Instantes depois, dois comparsas abriram a porta e saíram atirando. Oliveira foi atingido por quatro disparos de fuzil, um deles no abdômen, e morreu no local. Seu parceiro na viatura conseguiu escapar.

“Sempre me lembro do meu pai como um herói”

Desde pequena, um dos passeios favoritos de Laura de Lima Neves era visitar o quartel do Corpo de Bombeiros ao lado do pai, o sargento Luiz Marcelo da Silva Neves. “Adorava ir às festas e brincar dentro dos carros”, conta. No dia 12 de junho de 2003, a menina viu o veículo vermelho parar na frente de casa. Por um instante, Isabel Cristina, mãe de Laura, pensou que o marido havia chegado para fazer uma rápida visita durante o expediente. Ao atender a campainha, ouviu de um outro bombeiro a notícia do acidente com Neves. “Se um policial bate à sua porta, algo grave aconteceu”, diz Isabel Cristina. Horas antes, houve um incêndio em uma fábrica desativada e, durante o combate ao fogo dentro da instalação, o sargento caiu no fosso do elevador e morreu no local. Na semana passada, Laura voltou ao 1º Grupamento do Corpo de Bombeiros, no Cambuci, e posou para a foto diante do caminhão batizado em homenagem a seu pai.

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