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O eu como paisagem

Por Ivan Ângelo
Atualizado em 5 dez 2016, 16h25 - Publicado em 11 jan 2013, 18h24

Nas ocasiões propícias, gosto de brincar com uma frase que já não sei se adaptei ou se li emalgum lugar:

— Coitado de mim se não fosse eu.

Quais ocasiões propícias? Aquelas em que, na boa, fazemos sozinhos alguma coisa que poderia ser feita com a ajuda de alguém que está perto e não se mexe.

A frase contém um poucode absurdo e de cômico. Absurdo porque a pessoa se destaca de si e se avalia como imprescindível para si mesma, é o inseparável a se observar de outra perspectiva. Cômico porque tem aquilo que o filósofo Henri Bergson apontou como uma das motivações do riso: o tropeção inesperado. A sentença de reconhecimento “coitado de mim se não fosse você” leva um tropeção.

Uma das mais famosas do gênero “eu como paisagem” pode nem ser verdadeira. Conta-se que o jovem rei Luís XIV da França saiu de uma caçada para peitar o Parlamento, que ousara questionar um édito seu, e ouviu do presidente da casa que o fizeram pelo bem do estado. O rei teria respondido, do alto dos seus 17 anos: “O estado sou eu”.

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Dois grupos brasileiros de rock dos anos 80 escancararam o amor narcisista de uma geração. Roger, do Ultraje a Rigor, bradava “Eu me amo, eu me amo / não posso mais viver sem mim”. E a música Egotrip, da Blitz, dizia: “Eu te amo, eu me adoro, / eu não consigo te ver sem mim” e justificava: “Eu sou o cara mais gente fina que eu conheço”. Creio que é também de música essa frase redondinha, mas não consegui localizar seu autor e circunstâncias: “Que nem eu só tem eu”. Beleza de concisão egoísta.

Gosto de frases que dão aquela quebrada, ginga de corpo, fazem que vão para um lado e viram para o outro. A que se segue tem ainda o tempero de um derrotismo que conta vantagem ao contrário: “Eu sempre venço, quando não tem outro candidato”. É coisa do Woody Allen. O currículo é um modo de se ver, e tem gente que só aí é perfeita.

Freud estudou os lapsos da nossa fala e publicou um ensaio divertido sobre eles, Psicopatologia da Vida Cotidiana. Lá se encaixaria certamente o prazer secreto da sobrevivência aos outros que se encontra numa fala de Roberto Marinho, lembrada em livro por sua viúva, Lily Marinho. Dizia ele: “Se um dia eu morrer…”.

O mesmo Freud, enquanto trabalhava com a interpretação dos sonhos, analisando um sonho que ele próprio tivera, lembrou-se da história de um marido que diz para a esposa: “Se um de nós morrer, eu me mudo para Paris”. São formas do eu como paisagem.

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Tem gente que não atravessa uma conversa sem meia dúzia de “eu, por exemplo”. E aquelas pessoas que têm sempre um caso pessoal melhor do que o caso que acabamos de contar? Acham-se invariavelmente personagens das melhores histórias, conhecem pessoas mais esquisitas do que as que conhecemos, e muitas vezes nos interrompem antes mesmo de terminarmos, para dizer “não, pior mesmo foi o que me aconteceu”, ou coisas parecidas. Não vou escrever sobre isso porque Humberto Werneck já pintou o retrato desse pessoal em uma crônica saborosa em O Estado de S.Paulo.

Não vale colocar no mesmo balaio os poetas e os filósofos, que partem do eu para meditar sobre o mundo. O egocentrismo que nos distrai no momento não nos leva a mergulhos profundos, seguimos com água pelas canelas. Políticos, por exemplo, não têm outra perspectiva senão o eu, enquanto falam em povo e sociedade; quando são líderes, transformam seu partido em extensão de si mesmos. O ponto de vista do adversário é sempre visto como deformação e falsidade. Vejam que preciosa a frase do político americano Adlai Stevenson: “Se meus inimigos parassem de dizer mentiras a meu respeito, eu pararia de dizer verdades a respeito deles”. Outra preciosidade, com a qual encerro, vem do humorista americano Ambrose Bierce: “Egoísta é um sujeito mais interessado nele mesmo do que em mim”.

e-mail: ivan@abril.com

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