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O paraíso das damas

Le Bon Marché festeja 160 anos com a missão de seduzir também os cavalheiros

Por Simone Esmanhotto, de Paris
Atualizado em 5 dez 2016, 16h38 - Publicado em 10 nov 2012, 00h00

Dos vinte romances que o francês Émile Zola escreveu para compor a saga da família Rougon-Macquart, O Paraíso das Damas, volume de 1883, passeia pela grande novidade da belle époque: a loja de departamentos. Em nome da precisão do relato, o escritor se enfurnou nos então chamados “grandes bazares de novidades” de Paris, uma invenção da capital inglesa aperfeiçoada na capital francesa. Vasculhou a disputa entre os vendedores, a pressão na contabilidade, o entra e sai de mercadorias e de senhoras — daí o título do livro e do seu endereço ficcional, “Au Bonheur des Dames” (À felicidade das damas, em tradução livre). Das fontes de pesquisa de Zola, o endereço pioneiro permanece ativo: Le Bon Marché. Das parisienses Louvre e De la Paix não há rastro; sobram a Printemps, aberta por um ex-empregado do Bon Marché em 1865, e a Galeries Lafayette, de 1912, inaugurada dez anos após a morte do escritor. Em2014, a Samaritaine — iniciativa de 1869 do primeirovendedor de roupas do Bon Marché — volta a funcionar, depois de uma década fechada e de uma injeção de 450 milhões de euros do grupo LVMH para uma reforma sem precedentes. A Bergdorf Goodman, de Nova York, comemora 111 anos, separada da Saks, mais jovem, por 23 anos e dez minutos de caminhada pela Quinta Avenida. A milanesa La Rinascente data de 1865. As londrinas Harrods, de 1861, e Selfridges, de 1909.

A grande novidade só foi possível graças ao redesenho da capital francesa. A pedido de Napoleão III, que vislumbrava a cidade como uma outra Londres, repleta de parques e avenidas, entre 1853 e1870, George-Eugène Haussmann demoliu cortiços e alargou ruas. As maiores até então, com 12 metros, deram lugar a uma malha de 300 quilômetros de bulevares por onde seis carroças podiam trotar emparelhadas. A Paris medieval foi, assim, enterrada. Com ela, lojinhas familiares. O efeito foi além da grandeza das ruas e das dimensões agigantadas do comércio. Se para os ingleses, comparou a historiadora Jeanne Gaillard, especialista nesse período, as lojas de departamentos eram uma forma de escoar com velocidade as flanelas de Manchester e as casimiras de Leeds, para os parisienses “a venda era um ritual que incluía decoração cuidada, maneiras corteses e a capacidade de criar a necessidade” de produtos que passam longe do quesito sobrevivência, uma lição bem aplicada nos primórdios da Daslu.

+ Catherine Deneuve revela seus endereços preferidos no bairro do Le Bon Marché

Inaugurado em 1852 por Aristide Boucicaut, o Bon Marché é mais do que uma senhora aniversariante de 160 anos. Localizado na quadra formada pelas ruas de Sèvres, du Bac, de Babylone e Velpeau, no coração da margem esquerda do Sena, é, como Zola compreendeu, um símbolo de modernidade, a cara do século XX, urbano e frívolo. “Boucicaut percebeu que gastar, para as mulheres que antes só deixavam o chá e as recepções em casa para ir à igreja ou ao cemitério, se tornaria uma demonstração de poder”, diz Monica Burckhardt, autora de Le Bon Marché Rive Gauche — L’Invention du Grand Magazin (Ed. Assouline, 19 euros). Senhoras e senhoritas passavam cerca de duas horas ali (hoje, a média é de três horas) — e a loja leva o crédito pelo primeiro banheiro público feminino. Em uma década, o faturamento saltou de 100 000 francos para 20 milhões de francos. Na entrada de serviço, sobre os dois elevadores, uma placa com as cifras indica 1,97 milhão de euros num único dia de outubro de 2012.

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Para tornar o “compro, logo existo” uma experiência e tanto, Boucicaut, ajudado pela mulher, Marguerite, implementou técnicas inovadoras — e, de tão certeiras, ainda válidas — de comércio. Para atrair o pedestre dos bulevares, investiu na decoração de vitrines (agora elas estão ocupadas por ilustrações de Catherine Deneuve em seus endereços favoritos na Rive Gauche, bairro onde a atriz mora desde os anos 1980). Abriu as portas para quem queria dar “só uma olhadinha” na mercadoria. Parece trivial, mas até então só se entrava num estabelecimento para se comprar de fato (a combinação de vitrines decoradas e passeio sem compromisso de compras originou a expressão “window shopping”). Foi além. Colocou os preços à vista em etiquetas. Permitiu devoluções sem questionamentos. Inaugurou a venda pelo correio, o antepassado do e-commerce. Apostou na renovação ao ritmo das estações — uma loja de bairro mudava o estoque duas vezes por ano; na Louvre, segundo Zola, a seção de moda se renovava uma vez por semana. Ofereceu mercadorias exclusivas. Para comemorar seus 160 anos, 160 grifes de peso desenvolveram peças inspiradas no endereço icônico, que se somam a outras com etiqueta própria, num total de 600 itens, de vestidos a poltronas (veja alguns produtos nas páginas 152 e 153). Organizou, por fim, exposições temáticas — em 2013, o design e a gastronomia brasileiros serão a atração.

“Temos marcas e novos talentos que não se acham em todo lugar”, diz o CEO Patrice Wagner, em sua sala de paredes de mogno. Recrutado pelo LVMH, dono do Bon Marché desde 1984, Wagner entrou no prédio de ferro, projetado pelo engenheiro Gustave Eiffel, para torná-lo uma experiência melhor. Não há planos de estabelecer filiais, a exemplo de outros magazines. “Somos muito parisiens.” Da clientela, 70% são locais, seguidos de japoneses, americanos e brasileiros. Wagner abre as folhas encadernadas com o projeto de renovação, cuja primeira fase começa a funcionar neste mês. Ele revê a lógica de circulação pelas variadas seções, algo que os Boucicaut aplicaram à época para tornar a compra o resultado de um agradável passeio. Para valorizar a Grande Epicerie, mercado que vai do melhor morango francês ao melhor azeite espanhol, uma passarela o ligará ao prédio principal. Uma abóbada permitirá à luz da Cidade Luz inundar um novo restaurante francês. Sobre o Epicerie ficarão os departamentos de casa e cozinha. Sob o mercado, uma cave, com 3 000 rótulos, mira o público masculino. Numa caminhada natural, o cliente sai da cave e cai nas araras de moda. O vestuário masculino ganha importância. O número de produtos cresce 25% para ocupar 4 500 metros quadrados. Uma barbearia com poltronas vintage Belmont deve virar ponto entre os vaidosos. “Tudo será concentrado no subsolo, porque os homens não querem perder tempo circulando de um andar para o outro”, diz Wagner. O Bon Marché não demorou a notar o mercado masculino de estilo, que movimenta 40 bilhões de dólares ao ano. Resta aparecer um novo Zola para reportar os bastidores da loja de departamentos nesta virada do século XXI.

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