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Saudosa coxinha

Por Matthew Shirts
Atualizado em 5 dez 2016, 17h02 - Publicado em 14 jul 2012, 00h50

O subconsciente é sensível à comida. Sabores e cheiros dão acesso a lembranças, geram devaneios e criam cultura. Quem primeiro formulou essa hipótese foi Marcel Proust, até onde eu sei. No magistral “Em Busca do Tempo Perdido”, ele descobre o poder das madeleines, aqueles pequenos bolinhos típicos da culinária francesa. De acordo com o escritor, elas são capazes de provocar reminiscências involuntárias. A essência da memória e da cultura mora ali, no aroma do preparo de comida, segundo o romancista. Freud concordaria, desconfio.

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Pensei nisso ao olhar para uma daquelas estufas de vidro com coxinhas e quibes em um restaurante, quase boteco, que passei a frequentar nas férias. A coxinha é, para mim (e para muitos, desconfio) , uma das “madeleines” da cultura paulistana. No meu caso, ela evoca lembranças dos meus primeiros anos na cidade, quando passava horas nas ruas, padarias e lanchonetes. (Uma porção de coxinhas do Frangó, o tradicional bar da Freguesia do Ó, foi o pedido do publicitário Washington Olivetto ao ser libertado do seu cativeiro, no sequestro ocorrido em 2002. Os paulistanos entenderam.)

Surpreendente, no meu caso, foi encontrar a tal estufa em cima do balcão de um restaurante de San Diego, na Califórnia. Quem me deu a dica foi meu irmão, Mitch, que mora ali do lado. Procurava eu um lugar para assistir a jogos de futebol do meu time. Ele sugeriu o Brazil by the Bay. Basta uma mordida numa coxinha para aflorarem em minha cabeça imagens e até mesmo sons e cheiros da esquina das avenidas Brigadeiro Luís Antônio e Paulista.

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Junto ao restaurante, conectado por uma porta, há um pequeno mercado de utilidades domésticas. (Nisso, lembra a Mercearia São Pedro, o famoso ponto boêmio da Vila Madalena.) Vende-se um pouco de tudo ali. Arroz, guaraná em lata, caldo Knorr de sabor carne, panela de pressão, sabonetes Phebo em diversas fragrâncias, Nescau e as ubíquas sandálias Havaianas estão à mostra nas prateleiras do endereço, que fica próximo à Sports Arena de SD, cenário do filme ganhador do Oscar de melhor roteiro original em 2001, “Quase Famosos”, um dos meus prediletos.

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O negócio, devo dizer, rendeu uma pequena polêmica familiar a respeito das origens do mix de produtos daquele estabelecimento. Eu defendi a ideia de que uma coisa do tipo só podia ser obra de um paulistano — ou, no mínimo, de um paulista. Consigo imaginar algo semelhante em Santos, também, ou em São Vicente. Minha mulher, Luli, discordou. Ela observou que aquilo tudo pode ser encontrado no Brasil todo, ou quase. Para sustentar sua opinião, lembrou-me de uma venda que conhecemos na Fundação Amazonas Sustentável, no Rio Negro, a centenas de quilômetros de Manaus. Havia ali uma lista igualmente variada de artigos. 

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De qualquer forma, foi admirável encontrar esses produtos e comidinhas em San Diego. Sou dali. Fui criado perto daquela cidade. No meu tempo, vinte e tantos anos atrás, não havia sequer guaraná, muito menos quibes e quitutes. Na mercearia do Brazil by the Bay, os itens à venda não são para os americanos. Além de Nescau, por exemplo, vende-se Toddy. Só o mais avançado brasilianismo é capaz de entender a necessidade das duas marcas em uma loja da Califórnia. Levar achocolatado para os Estados Unidos é como carregar sanduíche a uma festa. Mas, para quem conhece a cultura do Brasil, a diferença é da ordem de um clássico Corinthians x Palmeiras.

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Não fui capaz de compreender o sentido da venda de óleo de cozinha brasileiro ali. Nos Estados Unidos, há marcas gringas com ou sem colesterol, de milho, de girassol, de canola e muitas outras. Será que nenhuma dessas variedades do produto serve? Tudo indica que a resposta é não. A comida, frita em óleo de cozinha brasileiro, deve ter outro gosto. Traz lembranças distintas. Só pode ser isso. Proust explica.

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