Há muito tempo que não te escrevo. Notícias, poucas. Aqui na terra estão jogando futebol. O seu Corinthians, olha, nem te conto. Saiu em Londres uma pesquisa dizendo que o jogador brasileiro é o melhor do mundo. Queriam dizer: é o melhor negócio. Coisa de mercado, sabe? Jogador brasileiro é quase uma commodity, mercadoria com cotação internacional. Dá retorno para quem investe. O Corinthians vende sem ter outro jogador para pôr no lugar. É como o pobre que vende a casa, gasta o dinheiro e fica sem ter onde morar.
O que eu quero te dizer é que a coisa aqui tá preta, como cantava o Chico em outros tempos. Preta no ar, na terra e nas águas. Aviões não decolam ou caem na cabeça das pessoas na hora do almoço; traficantes e polícia se matam e nos matam, corruptos de colarinho branco ou de calibre 38 surrupiam nosso dinheiro, pedintes nos deixam divididos entre compaixão e irritação, mulheres jogam bebês no lixo; e as águas descem dos morros trazendo lama, barracos e bercinhos. A morte é banal.
Tem nada não: Natal vem aí, Carnaval vem aí. As escolas de samba já escolheram seus enredos, batem caixas para os turistas. O povo é ritmista. Quando não leva instrumento, usa o que tem à mão. Caixa de fósforos. Aliança batendo no copo ou na garrafa de cerveja. Palma da mão. Antiga-mente até chapéu de palha. Só peço que me poupem de batida em tampo de mesa de botequim.
A Lina fez um filme bacana sobre São Paulo e o amor. A Ivana fez um livro bacana sobre o complicado amor da mulher, ou sobre o amor da mulher complicada, ou sobre a mulher do amor complicado. O Laurentino escreveu um livro bacana sobre dom João VI inaugurando o Brasil que temos hoje.
Já te falei que acho a história do Brasil meio abstrata? Quer dizer: abstrata para estudante. Não tem paisagem. Quase não há o que ver fora dos livros. Na Europa, você vê a história em cada esquina. Os prédios onde se desenrolaram os fatos estão lá; mesmo em ruínas estão lá as praças, as igrejas, as catedrais de 1?000 anos, os castelos. A arte está lá, diante dos olhos, pode-se tocar. Nossa relação com a história é livresca, tudo parece ficção, só que com datas. Destruímos os lugares. Nossas cidades viraram complicados ajuntamentos de pessoas ligadas por atividades, interesses, língua, alguns símbolos, mas falta o passado visível, concreto, arquitetônico, escultural.
E os heróis? Peguei um táxi no calorão do Rio de Janeiro e o motorista, alma de anarquista, passava diante das estátuas e ria: “Olha aí, herói. Hoje seria criminoso, não é não? Crimes inafiançáveis! Chacinas de índios, torturas de negros, destruição da fauna e do meio ambiente! Sem contar as safadezas!”. Aquilo daria uma boa conversa, mas eu não discordava nem concordava, sorria com certa preguiça.
Estou muito reclamador hoje, não? Deve ser o calor. Mas confio no futuro, confio nos moços e no que vão fazer do mundo. Está chegando a hora dos vestibulares, um momento carregado de esperanças. É verdade que já confiei mais. Na escolha da carreira profissional parece-me que eram mais românticas e idealistas as gerações de antes dos anos 1980. Foi quando começaram a ter peso muito forte no sonho dos moços o sucesso social, o dinheiro, a visibilidade, o poder. Os meninos mais antigos tinham três profissões idea-listas: médico, advogado e engenheiro. Médico para salvar vidas; advogado para defender as vítimas de injustiças; engenheiro para completar a obra da Criação com detalhes que ficaram faltando. Os puramente sonhadores queriam ser aviadores ou trapezistas. Hoje há muito mais opções, até para os sonhadores.
Você vem para o Natal? Garanto que já gastei minha cota de reclamações. Brindaremos a qualquer coisa, com espumantes brasileiros, que andam ótimos. Vê como já parei de reclamar? Beijos.