No último dia 2 fez 48 anos que vivo em São Paulo. Tenho mais tempo de paulistano do que de belo-horizontino.Conto mais amigos em SP do que em BH, conheço mais gentea qui do que lá, ando mais facilmente nestes labirintos doque naqueles, tão mudados. Aqui tenho casa, padaria, livrarias, café com os amigos, livros, mulher, filhas, netos, paisagem, trabalho, parque, museus, vinhos, comidas, ex-colegas, ex-cachorros.
Só falta mesmo bolinho de feijão.O poeta e cronista Paulo Mendes Campos, um dos grandes, publicou no livro Diário da Tarde, de 1981, sob o título “Mineiros no Rio”, uma deliciosa nota que reproduzo em parte, porque sem ela não tenho respaldo para o que virá a seguir: “Dico Vanderlei, mineiro de Peçanha, interrompendo uma conversa com Tom Jobim, carioca de Ipanema, sobre Guimarães Rosa, mineiro de Cordisburgo, pergunta bruscamente a mim, mineiro de Belô: ‘Você por acaso resolveu aqui no Rio o problema de bolinho de feijão?’.”
A nota prossegue com o autor dizendo que sim, que trimestralmente um amigo também mineiro o presenteava com uma pratada autoral de bolinhos de feijão, e que Carlos Drummond de Andrade também recebia a dele, ao que Tom, mal acreditando no que ouvia, falou: “Quanto mais eu gostodos mineiros, menos entendo vocês!”.Não posso dizer que não tive/tenho problema de bolinho de feijão.
É isso: quando a gente se desgarra de um lugar, algumas coisas vêm agarradas na gente.Tive, ô se tive, outros problemas parecidos nesses 48 anos: de pastel de angu, de brevidade, de doce de leite, de queijo da Serra da Canastra ou do Serro… Alguns foram parcialmente resolvidos pelo comércio, como o de doce de leite; parcialmente, porque não vêm para cá os melhores.
Como é que se resolve o problema de limão glaçado com recheio de doce deleite, por exemplo? Se alguém tiver problema de araticum, taioba, requeijão duro, tijolo firme e moreno de geleia de mocotó, rapadura batida, pequi fresco, como vai resolver? Já foi solucionado, em âmbito nacional, o problema de pão de queijo.Pois. Quando cheguei, não havia pão de queijo do lado decá das montanhas.
Desembarcamos quase juntos. A primeira portinha a vendê-lo em Sampa fez um súbito sucesso, na região da Praça da República, em 1966. Tão súbito que o Jornalda Tarde — atento às novidades da cidade — abriu título empágina interna: “De repente, filas para comprar pão de queijo”.Voltando ao bolinho de feijão. O ingrediente básico é o feijão-fradinho. Dá trabalho: pôr de molho na véspera, tirar a casca, escorrer, socar até virar pasta ou passar no processador, bater para aerar, temperar a massa com sal, alho ralado e pimenta, fritar,do tamanho de uma colher de sopa, achatadinho.
Não se põe nada dentro, como no acarajé. Ele é ele mesmo. Parece que o progresso o matou, mesmo em Minas. Exemplo. Em Tiradentes, um boteco anunciava os bolinhos em placa na porta. Sentei, pedi uma cerveja, antegozando o reencontro, e o garçom veio de lá com a má notícia: não tem, não veio hoje. E ontem? Também não. Amanhã? Pode ser, né. Em BH, só acha o bolinho quem domina a paisagem. Minha irmã diz que em algum lugar do Mercado Municipal vendem a massa pronta, para fritar em casa. Sei não. Prestará? Ela contesta com doçura mineira: “Uai, se não prestasse não vendiam”. Pois é. Não prestou. Problema, viu?