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Modos de dizer

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h44 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

Curiosos são certos hábitos de linguagem. Usos que surgem sem a gente perceber ou pensar neles, maneiras de dizer. Psicologia da língua.

Ocorreu-me isso quando estava jogando bola com meu neto no parque e o pipoqueiro perguntou:

– O senhor já tem uns sessentinha, não?

Sessentinha. Delicado, isso. O diminutivo significaria que eu parecia estar no começo dos meus anos sessentas? Se fosse o caso, um sessentão seria aquele que já vai lá mais adiante? Ou o diminutivo poderia significar, lisonjeiramente, que eu parecia ágil para os 60? (Estando, na realidade, bem adiante.) Sutil a língua brasileira com relação à idade das pessoas. Ninguém diz que você é um vintão, um trintão. Mas logo ganha um “ão” quando chega aos 40, e a partir daí é quarentão, cinqüentão, sessentão, setentão. Aos 80, você se torna vítima de uma bem-intencionada deferência, ganha o rótulo de octogenário, horroroso. Não se diz oitentão. Nem noventão (nonagenário) nem centão (centenário). Já virou sobrevivente.

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Vejam os anúncios de apartamentos para vender ou alugar. Quartos agora são chamados de dormitórios. Como se dormitório fosse mais nobre do que quarto, ou como se dizer dormitório fosse falar bonito. Nas sutilezas captadas pelo marketing, “dormitório” deve ter mais prestígio, deve vender mais apartamentos do que “quarto”. Na hora do uso, porém, ninguém diz: “Já para o seu dormitório, menino!”, ou “Vamos para o dormitório, querida?”, ou “Ai, o que está acontecendo com essa menina, que não sai do dormitório?”.

Da mesma forma, certas pessoas empregam palavras mais pomposas ou formais quando falam alguma coisa na televisão. A idéia aqui talvez seja falar bonito para uma platéia maior. A classe média adora “caprichar” na linguagem. Prestem atenção nos policiais, principalmente militares, e nas autoridades: além de usarem o jargão profissional, tentam falar bonito. São essas pessoas que dizem dormitório em vez de quarto, veículo em vez de carro, calçado em vez de sapato, local em vez de lugar, rodovia em vez de estrada, aeronave em vez de avião, armamento em vez de arma, residência em vez de casa, evadiu-se em vez de fugiu etc. etc.

Deve ser a mesma pretensão que leva comerciantes a escrever “sale” e “off” nas vitrinas de suas lojas, como se aquele esnobismo se transferisse para as mercadorias que vendem. De novo surge um conflito entre a aparência e a realidade. Quando uma amiga chama a outra para ir a uma liquidação, ela não fala “sale”, e diz que estão oferecendo 50% “de desconto” e não “off”.

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Alguns modos de dizer tornam-se armadilhas, pegam distraídos até dicionaristas. No caso que vou citar, a distração poderia sinalizar um preconceito. E se não foi distração? Pode ter sido uma decisão. Explico. Os dicionários sempre registram os adjetivos e certos substantivos pelo gênero masculino. Vejam lá: amado, rico, feio, antigo, belo. Quando chegam aos adjetivos começados por “mal”, seguem registrando no masculino: mal-acabado, mal-afamado, mal-agradecido, mal-ajambrado, mal-ajeitado. Mas de repente vemos lá a palavra “mal-amada”, no feminino, só no feminino. Por que teriam mudado justamente nessa palavra a regra que vinham seguindo? Como se apenas mulheres fossem irrealizadas no amor, ou não correspondidas. Como se esse fosse um atributo do gênero feminino.

O dicionário que uso não fica nisso: sugere que quem consulta “mal-amada” confira a palavra “bem-amado”. Subentende-se: homem bem-amado existe; mal-amado não.

Não deve ter sido distração.

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