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Mistério (2)

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h44 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

A tranqüilidade voltou vagarosamente ao condomínio, depois dos dias agitados por fofocas e interrogações que se seguiram à descoberta da mão esquerda de um esqueleto no subsolo da área de lazer. Os moradores desistiram aos poucos de gastar energia para esclarecer o mistério, cansados de hipóteses e esbarrados no desinteresse da polícia. A mão tétrica, lacrada de novo no porão por decisão dos condôminos, consumia no escuro sua carga de acenos. A aliança de ouro, encontrada no dedo anular, com a inscrição “Mário 20-7-1969”, ficou solteira na gaveta do síndico. Onde seu par, perdido para sempre?

Uma ou outra senhora, sentada em fins de tardes num dos bancos do jardim, ainda comentava com vizinhas que aquilo ia ficar por isso mesmo, “como tudo no Brasil”. Adolescentes leitores de Harry Potter tentaram assumir o caso, reabrir o porão, capturar a mão esquelética, solucionar o mistério, mas os pais ordenaram que deixassem de histórias e fossem estudar. Um pedreiro da obra de reforma contou que sonhara duas vezes com a mãozinha chamando-o. Com o tempo, os moradores avançaram na direção do esquecimento.

Nem todos.

O senhor H., bom conversador, parceiro disputado para duplas de tranca no salão de jogos, porque lance nenhum lhe escapava e tinha intuições, parecia até que trapaceava no jogo, deu para se sentar com as velhinhas dos bancos vespertinos. Contava casos, ouvia, riam, comentava o jeito de um ou de outro antigo morador, elas se lembravam de um que tinha incontinência urinária e deixou uma poça no elevador; de outro que se achava jardineiro e regava a palmeirinha do jardim desde pequenininha, aquela ali, agora grande; de uma senhora que era sonâmbula e descia de camisola pelo elevador, andava, andava sem esbarrar em nada e voltava para casa; de outro que tinha falhas de memória, sumiu e foi encontrado no Brás…

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– Sorte – interrompeu ele. – Às vezes a pessoa some e ninguém mais vê. Passa o tempo e já era, nunca mais.

Nenhuma delas engatou algum caso na conversa. Estava na hora do jogo de tranca. No dia seguinte, lá estava ele entre elas, falando sobre as mulheres mais belas do condomínio, e uma velhota se lembrou:

– A mulher mais bonita que teve aqui foi uma das primeiras moradoras. Não demorou, largou o marido. Esta área aqui nem estava pronta ainda. Eles moravam no bloco A. Bonita mesmo, aquela era. Um espetáculo.

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– Não era Mário o nome do marido? ­ engatou ele, como se lembrasse e não lembrasse.

– Não! Mário, não. Era Alfredo, seu Alfredo.

– Ah.

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Se ela tivesse reparado, teria achado que decepcionara o senhor H. No outro dia ele quis saber mais detalhes.

– Seu Alfredo? Ah, ficou muito triste, arrasado. Mudou muito. Ele não era bonito nem era muito novo, já tinha uns 50 anos. Ela era bem mais nova, um espetáculo. Arranjou outro, foi-se embora com ele, o pessoal é que diz.

– E seu Alfredo, já morreu?

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– Tá vivo. Ahn. Vivinho da Silva.

– Morando aqui?

– Até hoje. Cheio de manias. Nem bom-dia não dá. Se acha dono daquele banco da palmeira, aquele ali, ó, senta lá toda tarde. Não reparou? A gente apelidou ele de “Jardineiro”, ficou com mania de regar planta. Ó, chegou! Olhe ele lá. Não rega mais, está muito velho, coitado. Fica ali, falando sozinho. Já tá perto dos 90, eu acho.

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O senhor H. chegou-se mais para perto dela, falando baixo, como um bisbilhoteiro, o que a encantou:

– Deve ter começado com essa mania depois que a mulher sumiu, não foi, não?

– Ah, acredito que sim. A pessoa que ama fica muito abalada.

– Qual era o nome dela?

– Rosa. Um espetáculo.

O senhor H. ficou olhando o velho por algum tempo. Tinha certeza de que o corpo de Rosa estava enterrado sob a palmeira.

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