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Mistério (1)

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h44 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

Agita-se o condomínio. Sob o piso da grande área de circulação e lazer – onde há duas piscinas, amplo solário, jardins com arbustos, palmeirinhas e folhagens, churrasqueira, forno para pizza e quadra de esportes –, trabalhadores das obras de reforma encontraram um grande vão, de mais de 2 metros, e lá dentro uma surpreendente mão de esqueleto.

Primeiro, o susto, e logo a hipótese apaziguadora do engenheiro da obra: seria parte de alguns ossos de estudantes de medicina. Mas não, não! Havia no dedo anular uma ostensiva, incômoda e escandalosa aliança de ouro. Chama o síndico!

O vão, de altura correspondente à parte mais funda da piscina e dos caixotes de terra do jardim, fica entre o piso da área de lazer e o teto da garagem. Ali estava largada a mão sinistra. Vasculhando com lanternas, encontraram ainda uma cama de ferro carcomido, uma camisa, uma calça, um par de sapatos, um criado-mudo, sobre ele uma vela meio queimada e um copo.

– Algum corpo? O resto do esqueleto? – perguntou o delegado à comissão de moradores que foi relatar o fato e saber o que fazer.

– Só aquela mão. Nem pegamos, ainda está lá no buraco.

– Quem tem acesso a essa área?

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– Ninguém. Não existe passagem para o buraco, é cimentado. Moro no prédio desde que teve habite-se, faz 36 anos. Nem tinha acabamento ainda. Ninguém nunca soube desse vão aí. É lacrado. Só apareceu agora, na quebradeira da reforma.

O delegado olhou-os com um sorriso de mãos espalmadas:

– Olha, pessoal, nada a fazer. Trinta e seis anos. Se houve crime, e eu digo se, já prescreveu. Deixou de ser caso de polícia. Fica a critério da curiosidade de vocês.

Dispensou-os, com ares de quem tem coisas a fazer.

A deixa do delegado despertou os detetives amadores que dormiam neles. Voltaram ao prédio e ao buraco. Cada qual com um parecer, um palpite; cada dia, uma idéia.

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– É mão esquerda. Ó o dedão: palma pra baixo, dedão pra direita.

– Vê se a aliança está gravada.

– Boa idéia!

– Nojo!

Tinha um nome e uma data: “Mário 20-7-1969”.

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– Nome de homem… Ê-ê. Ou essa mão é de mulher ou temos aqui um caso de gay.

– Como de mulher? O sapato ali é de homem.

– E a roupa também. Roupa barata, olha só.

– Ele pode ter matado em outro lugar e ter trazido a mão para cá.

– A data, gente, é de antes da inauguração do prédio.

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– É mesmo! Vai ver ele trabalhava na construção. Morava aí.

– Ou se escondeu aí. Pela data, casou durante a obra.

– O corpo pode estar por aí, cimentado no meio da laje.

– Picado. Um pedaço aqui, outro ali. Já imaginou?

– A mão é grande, pra ser de mulher.

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– Gay nessa época não usava aliança, isso é coisa de agora.

– Quem sabe nos bolsos tem alguma coisa.

– Aranha, escorpião.

– Engraçadinho. Não, aqui não tem nada. Só poeira, olha isso. Nada aqui. Aqui também não. E o criado-mudo?

– Tá esfarinhando. Vazio, não tem nada.

– Gente, presta atenção: 69! Regime militar. Plena repressão. Quem sabe esse porão aqui…?

– Pô, meu, não viaja!

– E se a gente procurasse nos jornais da época as notícias de pessoas desaparecidas?

– Em 69? Só tinha. Gente desaparecia pra virar hippie, se mandar, luta armada, preso político, curtir umas… Fora o comum, gente que pira e some.

– Um mês de jornais, dois meses? Todos os jornais? Folha por folha? Não dá. Quem tem tempo?

– Nem saía nos jornais, era censurado.

– A gente podia ver no INSS os pagamentos da construtora para os operários. Ver se tinha algum Mário trabalhando aqui.

– E se tivesse dois? Ou três? Onde achar os caras? Quem vai correr atrás? E achar pra quê?

A última pergunta colocou a questão no espírito de cada um: achar para quê? A resposta passeou de cabeça para cabeça: para saber, por curiosidade, porque não se pode ter uma mão seca no subsolo e deixar para lá. No fundo, era mais do que isso. Os mais antigos não suportavam a idéia de que alguém pudesse tê-los enganado; os mais novos suspeitavam que alguém os estava enganando.

Sem rumo, cimentaram de novo o buraco e procuraram esquecer.

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