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Melhor não

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h46 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

Digamos que ele tinha relações com o mistério. Não fazia alarde, nem pose, era discreto nos possíveis erros e nos comprovados acertos. Nunca foi de dizer: “Eu sabia”, “Eu avisei”. Também nunca se atribuiu relações privilegiadas com qualquer divindade ou entidade, não jogava para cima a responsabilidade pelas suas intervenções. Se alguém disse “Foi Deus quem avisou”, não foi ele. Nunca atuou por encomenda nem se preparou: o que acontecia, acontecia quando acontecia.

Na aparência, uma pessoa normal, simples. Discreto no vestir, jeans e camisa social, de cores sempre neutras, limpos e bem passados; no calçar, sempre sapatos pretos e engraxados; discreto na barba e no cabelo, sempre aparados; no falar, cordato, econômico e em tom audível; no mover-se, meio lento, como se desse passagem para alguma coisa que vinha com mais pressa. Ria pouco, mas não era mal-humorado nem triste. Enfim, não chamava atenção: um traço, um ponto, um lápis.

Apresentou-se para trabalhar como motorista. No currículo: ex-guarda municipal. Gostaram dele na entrevista, olho no olho, sem atrevimento. Notaram certa elegância no gesto de entregar os documentos e recebê-los de volta.

A primeira vez que perceberam a sua diferença – estou evitando a palavra dom, não sei por quê – foi num dia de jogo do Brasil. Ele estava trepado numa escada, prendendo uma guirlanda no teto da sala do apartamento, e o patrão, já com a mão na porta, disse que ia à garagem buscar a bandeira que havia esquecido no carro. Lá de cima ele bradou enérgico, fora do seu normal:

– Melhor não!

Estranheza geral na sala. O patrão voltou, já meio encrespado:

– Como é que é?

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Ele, como se caísse em si, repetiu mais brando, e consertando:

– Melhor não. Daqui a pouco eu pego.

A estranheza não se desfez, os da família entreolhando-se, e daí a pouco se ouviu um grande estrondo. O elevador havia despencado – dois feridos graves, um em coma.

Não soube explicar, disse apenas que fora um impulso. Dias seguidos perguntaram, e ele, simples: “Não sei, foi um repente”. Tiveram dificuldade até de saber se já havia acontecido, ele achava que sim, mas não registrava. Lembrava-se de um dia, porque lhe custou o emprego. Acordou e não foi para a Guarda, fazer a ronda: “Melhor não”, veio na sua cabeça. Naquele dia, bandidos do PCC barbarizaram a cidade matando policiais e bombeiros, e em seguida ele foi demitido por faltar ao dever.

O patrão começou a chamá-lo de Anjo da Guarda. Ele pediu que o chamassem pelo nome, não brincava com essas coisas. Mas o patrão gostava de apelidos; o máximo que fez foi abreviar, e ele ficou sendo o Da Guarda.

Da Guarda raramente dizia “Melhor não”. Repararam que ele usava a expressão naqueles momentos em que parecia ter levado um imperceptível choque, sua cabeça dava um milimétrico tique. Quando acontecia, a sequência era sempre parecida: alguém propunha fazer uma coisa, ele dava o tique, “Melhor não”, e alguma coisa ruim para a família era evitada. Sair de carro para tal lugar: “Melhor não” – tromba-d’água e enchente com morte na região aonde iam. Brinquedo gigante no parque: “Melhor não” – um cabo de aço se parte, feridos. Atravessar a rua, na faixa, sinal verde para pedestre: “Melhor não” – um automóvel acelerado não respeita o sinal. Uma viagem para esquiar: “Melhor não” – avalanche. Uma compra: “Melhor não”. Em dois anos, foram salvadoras as vezes em que Da Guarda se pôs entre uma ação e um desastre com pessoas da família.

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Um dia, anunciou que precisava ir embora. Não disse que queria, disse que precisava. Foi inútil apelar, oferecer aumento, perguntar se havia algum problema. Suave como sempre, Da Guarda esquivou-se:

– Eu tenho de ir.

Insistiram: por que não ficava?

– Melhor não.

Arrepiaram-se diante da expressão fatal. Ao partir, o que teria ele evitado que acontecesse? Sentiram-se desamparados.

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