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Mara Cristina Gabrilli: derrubando barreiras

Tetraplégica, a psicóloga e publicitária trabalha até dez horas por dia para incluir 1,5 milhão de deficientes em São Paulo

Por Maria Paola de Salvo
Atualizado em 6 dez 2016, 09h04 - Publicado em 18 set 2009, 20h35

Os dois celulares da publicitária e psicóloga Mara Cristina Gabrilli não dão descanso. Numa das ligações, Cláudia Gabrilli tenta, sem sucesso, cavar um espaço na agenda da filha. Nada de ressentimentos. A mãe já está mais do que acostumada a perder a disputa para os compromissos de Mara, que começam logo cedo. Às 9 horas, depois de já ter tomado café, lido os jornais e brincado com Tuiuiu, Fritz e Schana, seus três cães de estimação, ela se exercita por uma hora no jardim de casa. Toma banho, veste-se apressadamente e parte para o trabalho. Antes de chegar ao gabinete, no 10º andar do prédio da prefeitura, no centro, pára na Avenida Paulista para vistoriar calçadas. A rotina da ex-secretária da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida seria semelhante à dos outros vinte secretários municipais não fosse um detalhe: Mara faz tudo isso sem mexer um único membro.

Há doze anos, depois de um grave acidente de carro que a deixou tetraplégica, ela consegue movimentar apenas o pescoço e a cabeça. Ficou cinco meses no hospital e levou outros dois para reaprender a respirar sozinha. Hoje, aos 39 anos, precisa de ajuda até para as tarefas mais simples, como tirar um fio de cabelo do rosto, mudar de posição enquanto dorme ou espantar uma mosca. “No começo, eu preferia ficar com o nariz sujo a chamar alguém”, conta. Não demorou, no entanto, para dar a volta por cima. Em vez de se lamentar, Mara preferiu chamar atenção para a necessidade dos deficientes e apegar-se à chance de 1% que lhe deram de voltar a andar um dia. Em 1997, criou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP), que auxilia deficientes físicos e pesquisa curas para eles. Três anos depois, deu o que falar ao posar nua para um ensaio da revista Trip. De calcinha e sutiã, também encarnou a modelo sensual em uma campanha publicitária para uma marca de lingerie. Não parou por aí. Nas últimas eleições, candidatou-se a vereadora, foi a mulher mais votada do PSDB (11 917 votos) e acabou como suplente. Convidada pelo então prefeito José Serra, assumiu em 2005 a primeira secretaria do país voltada para cegos, surdos e outros deficientes.

Na quinta-feira passada (1º), sua cadeira de rodas não a impediu de atuar em mais uma frente. Mara tomou posse como vereadora na Câmara Municipal de São Paulo, para onde pretende levar uma dezena de projetos de lei. “Devo ficar por lá o tempo suficiente para protocolá-los, depois volto à prefeitura”, promete. Quem assume o seu lugar, enquanto na prática ela fica licenciada do Executivo, é o secretário-adjunto Renato Baena, que terá um grande desafio pela frente. Com 47 funcionários – oito deles deficientes –, a Secretaria tem orçamento anual de 8 milhões de reais, a menor fatia do caixa municipal (para se ter uma idéia, as pastas da Educação e da Saúde contam, respectivamente, com 3,4 bilhões e 2,9 bilhões de reais).

Na Câmara, a bandeira de Mara continuará a mesma: eliminar barreiras e lutar para incluir na sociedade os cerca de 1,5 milhão de deficientes e os 2 milhões de pessoas com mobilidade reduzida, como obesos, idosos e gestantes, que vivem na capital. As estatísticas nessa área, entretanto, não são confiáveis. “Os únicos dados mais recentes são os do Censo do IBGE de 2000”, diz Mara. “Mas, como o questionário é autodeclaratório, um senhor que usa óculos pode, por exemplo, se considerar cego.” Calcula-se que existam em São Paulo 416 000 deficientes físicos, como paraplégicos (que não movimentam as pernas), hemiplégicos (sem movimentos em um dos lados do corpo), tetraplégicos (que não mexem os quatro membros), amputados e outros. Os cegos somam 687 000, os surdos, 247 000, e os deficientes intelectuais, 131 000, caso de quem sofre de síndrome de Down. Desde 1999, os anões (2 000 na cidade, segundo estimativa da Associação Gente Pequena do Brasil) passaram a ser considerados deficientes no país.

O transporte está entre as prioridades da gestão de Mara (veja quadro). Ela comemora o aumento do número de ônibus adaptados. Eram 300 em janeiro de 2005. Hoje são 1 287 – menos que 8,5% da frota, mas mais que um por linha, como manda a lei municipal. Entre os novos coletivos, 43 já têm um sistema novo em que a suspensão abaixa 10 centímetros, ou, como Mara gosta de dizer, “ajoelha-se” para receber cadeirantes, anões e idosos com dificuldade de locomoção. Eles são equipados com bancos duplos para obesos e possuem espaço para os cães-guias. “Antes eu não podia entrar em veículo nenhum com meu labrador”, lembra o estudante Daniel Monteiro, de 20 anos, cego de nascença. Ele e os outros deficientes ganharam no ano passado 62 quilômetros de calçadas acessíveis, que dispõem de piso com indicações táteis no chão para orientar cegos e são livres de degraus ou ondulações. “Em algumas ruas agora podemos andar sem nos preocupar com barreiras e imperfeições”, diz o sargento Jefferson Eduardo dos Santos, paraplégico e presidente da Associação dos Policiais Militares Portadores de Deficiência do Estado de São Paulo.

Apesar dessas boas notícias isoladas, os deficientes ainda enfrentam dificuldades enormes de locomoção, principalmente em espaços públicos. “Os imóveis continuam a ser projetados com portas e banheiros extremamente estreitos”, diz a especialista Sandra Perito, do Instituto Brasil Acessível. Em dois anos, a prefeitura vistoriou 756 casas e prédios em São Paulo. Concluiu que praticamente nenhum deles atende à lei municipal de 1993 que obriga todos os estabelecimentos que reúnam mais de 100 pessoas a oferecer condições de acesso a deficientes. Mara pode enfrentar ruas íngremes e esburacadas, guias altas, escadarias e banheiros estreitos porque, tendo sua família recursos financeiros, conta com uma superinfra-estrutura, realidade inimaginável para a maioria dos deficientes. Ela passa as 24 horas do dia cercada por pelo menos uma de suas três assistentes e um motorista. São eles que trocam sua roupa, a transferem do carro para a cadeira, escovam seus dentes… “Cuido mais dela do que da minha própria filha”, afirma Gidalva Correia Cardoso, a Gil, que a acompanha até nas reuniões no gabinete e tem em seu passaporte o carimbo de pelo menos quatro países. Todos das viagens com a chefe. “Ela vai a mais eventos que eu”, garante o amigo e secretário das Subprefeituras Andrea Matarazzo. Mara comparece, em média, a quatro compromissos por dia. Emenda um no outro e, para não perder tempo, leva na van tudo de que precisa. Ela muda o visual durante os congestionamentos e, vaidosa, nunca se esquece dos brincos.

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Por um capricho do destino, a deficiência física cruzou os caminhos de Mara mesmo antes do acidente. Aos 20 anos, ela deixou o Brasil para morar por dois anos em Florença, na Itália, onde cuidou voluntariamente de uma adolescente tetraplégica. “Eu mal podia imaginar que fazia por ela o que hoje fazem por mim”, diz Mara, que após a experiência desistiu da carreira publicitária para cursar psicologia. Incansável, ela não começa a relaxar antes das 8 da noite. É quando encerra o expediente e deixa o gabinete para encontrar o namorado, o nutricionista Alfredo Galebe. “É a única hora em que ficamos juntos”, afirma ele. O namoro se iniciou há quatro anos, depois que Alfredo a viu na TV, num programa de entrevistas. Quando a insistente dona Cláudia Gabrilli consegue convencê-la a abrir uma brecha na agenda, saem todos para jantar. “Minha maior preocupação era que com o acidente minha filha perdesse a alegria que sempre teve de viver”, diz Cláudia. “Diferentemente de outras mães, fico orgulhosa e feliz quando ela está muito ocupada para me atender.”

Sete áreas em que Mara fez diferença

• Transporte – Os ônibus adaptados passaram de 300 para 1 287, mais de um por linha. Desses, 43 têm um sistema que permite baixar a suspensão para receber cadeirantes, idosos e cegos com cão-guia.

• Cultura – O projeto Arte Inclui levou até agora 7 500 deficientes ao cinema, ao teatro e a exposições.

• Educação – Desde setembro do ano passado, qualquer pessoa pode solicitar impressões de livros em braile ou audiolivros (com texto narrado) em uma das sete bibliotecas municipais com acervo em braile ou nos dez CEUs que fazem parte do programa.

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• Trabalho – Dos 4 375 deficientes que entregaram o currículo nos Centros de Apoio ao Trabalho, 673 conseguiram uma vaga. Metade deles era de deficientes físicos. A qualificação ainda é uma barreira: só 10% possuem ensino superior completo.

• Esporte – Em setembro do ano passado, a cidade abrigou pela primeira vez os Jogos Municipais Inclui Sampa. Cerca de 153 pessoas com deficiência competiram em modalidades paradesportivas.

• Acessibilidade – Em 2006, a prefeitura investiu 11,3 milhões de reais na reforma de 62 quilômetros de calçadas da cidade, que agora passam a ser acessíveis a deficientes. Elas têm piso com indicações táteis e sem irregularidades.

• Habitação – Foram lançados em junho de 2005, na Casa Cor, os Selos de Habitação Universal e Visitável. Eles rotulam imóveis que permitem acesso de pessoas com deficiência.

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