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Isa Ferraz: “Marighella era um segredo guardado dentro de casa”

Sobrinha do guerrilheiro fala sobre o documentário em que retrata o “tio Carlos”, inimigo número 1 da ditadura

Por Tiago Faria
Atualizado em 1 jun 2017, 18h11 - Publicado em 7 ago 2012, 19h18

O documentário “Marighella”, que estreia nesta sexta (10), pode ser descrito como um filme de investigação. Nele, a diretora Isa Grinspum Ferraz procura pistas para contar a história de seu tio, o homem mais perseguido pela ditadura militar brasileira.

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“Para mim, ele era um mistério”, conta. Nas primeiras cenas do longa-metragem, é ela própria quem lembra o momento em que, a caminho do colégio, seu pai revelou a identidade enigmática do “tio Carlos”. “Ele estava sempre aparecendo e desaparecendo de casa”, narra a cineasta. Isa tinha 10 anos quando, em novembro de 1969, Marighella foi assassinado em uma rua de São Paulo. Hoje, além de cineasta e roteirista, ela é conselheira e diretora cultural da Fundação Darcy Ribeiro.

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No filme, a trajetória do guerrilheiro comunista é revista com um rico material histórico que inclui documentos da CIA, fotos de família e gravações de rádio inéditas feitas em Cuba nos anos 60. Depoimentos de amigos e estudiosos, além da viúva Clara Charf, garantem profundidade ao retrato de um homem que viveu na clandestinidade por mais de 40 anos, alvo tanto da Era Vargas quanto da repressão nos anos 60.

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Na entrevista a seguir, Isa fala sobre a criação de um projeto pessoal, que começou a ser feito ainda nos anos 80 e que – auxiliado por um rap de Mano Brown, do Racionais MC’s – pretende apresentar uma personalidade política explosiva a uma nova geração de espectadores.

VEJA SÃO PAULO – O que a motivou a contar a história do seu tio depois de tanto tempo?

ISA FERRAZ – Sempre tive interesse pelo personagem. Para mim, Marighella era um mistério. Eu me perguntava: como aquela pessoa tão doce podia ser um assassino, um terrorista? Ao mesmo tempo, eu sofria uma pressão por não poder falar sobre o assunto. Era um segredo da ditadura, guardado a sete chaves dentro da minha casa. Em 1986, comecei a escrever o roteiro, registrei na Biblioteca Nacional, mas não consegui captar um tostão. Naquela época, nenhuma empresa queria associar o nome ao de Marighella. Com as mudanças políticas no Brasil, ficou mais fácil. Quando se aproximou o centenário de nascimento dele, no ano passado, percebi que era hora de fazer o filme.

VEJA SÃO PAULO – Não há muitas imagens de Marighella. Essa limitação a intimidou?

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ISA FERRAZ – Não existe nenhuma imagem do Marighella vivo em movimento, e são pouquíssimas as fotos dele. Ele passou a vida inteira apagando rastros. Mas eu tinha essa curiosidade de investigar. A dificuldade me intimidou muito no começo, mas acabou sendo interessante. Tive que criar soluções totalmente diferentes [no filme]. Tentei encontrar as pessoas mais interessantes, que pudessem dar depoimentos que tornassem vivo o personagem.

VEJA SÃO PAULO – O filme não contesta a luta de Marighella. É um documentário para militantes?

ISA FERRAZ – Minha ambição foi falar para um público amplo, não para os velhos militantes. Não foi para esse público que eu fiz o filme. É para que as novas gerações e o povo brasileiro descubram um homem que lutou por uma ideia de país. Concorde ou não, isso é algo cada vez menos comum. Existe uma carência grande de informações sobre esse período. As escolas ensinam mal, e as pessoas querem saber. Me perguntaram: você não vai ouvir o outro lado? Eu não preciso ouvir. Esse outro lado falou ao longo desses quarenta anos com prisões, tortura, perseguição.

VEJA SÃO PAULO – O documentário tem uma função informativa e um lado emotivo, pessoal. Foi difícil conciliar essas duas linhas na narrativa?

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ISA FERRAZ – Desde o primeiro segundo, eu tinha que assumir que esse era um filme de sobrinha. É apenas um entre milhares de pontos de vista que poderiam existir sobre essa figura, que teve uma vida intensa e longa. Esse é o meu filme, o meu recorte. E é um filme amoroso. Muitos outros vão surgir a partir de agora. Eu não podia fazer um filme pretensamente objetivo. Nem existe objetividade, e não me propus a isso. É o retrato de um homem filtrado pela memória de quem o conhece.

VEJA SÃO PAULO – Gostaria de ver um filme de ficção sobre o Marighella?

ISA FERRAZ – Ele foi um grande personagem. Durante as filmagens, o Lázaro Ramos [que fez a narração em off] disse que quer ser o Marighella. Mas não sei fazer ficção e, por isso, não vou fazer.

Clara Charf, viúva de Marighella, no documentário "Marighella"
Clara Charf, viúva de Marighella, no documentário "Marighella" ()
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VEJA SÃO PAULO – Há poucos meses, foi lançado “Uma Longa Viagem” (de Lúcia Murat), outro documentário sobre o período da ditadura militar, narrado por um viés familiar. É uma coincidência feliz?

ISA FERRAZ – Conheço a Lúcia Murat, gosto muito do filme. Somos amigas. É legal poder contar essas histórias. Por muito tempo, nós vivemos sufocados, sem poder falar. Eu descobri que meu tio era o Marighella quando eu tinha dez anos, e ele morreu dois meses depois. Tive que guardar isso como um segredo total até 1982. Não contava nem para os meus namorados. Ter feito o filme traz sim um sentimento de libertação.

VEJA SÃO PAULO – Após a produção do filme, a imagem de Marighella mudou para você?

ISA FERRAZ – A imagem dele cresceu muito. Descobri que aquela pessoa que eu amava tinha um supercarisma. Mesmo os inimigos falam isso. Ele sabia se comunicar com as pessoas de uma forma incrível. Também era muito engraçado e divertido. Fazia paródias das músicas de Roberto Carlos usando os nomes dos meus colegas de classe. Era muito carinhoso, cuidadoso, punha a gente para dormir. E tinha uma influência internacional incrível.

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VEJA SÃO PAULO – Por que convidou Mano Brown para compor um rap para o filme?

ISA FERRAZ – Eu queria falar com as novas gerações. Quando fiz o roteiro, pensei num rapper. O meu filho me indicou o Mano Brown. Disse que era um gênio, o melhor rapper. Mas o Mano Brown é difícil, levamos um ano e meio para chegar nele. Até que uma amiga da Clara [viúva de Marighella] conseguiu que ele topasse. Brown não conhecia Marighella muito bem. Viu o filme várias vezes, demorou para fazer, mas saiu um rap extraordinário. Na internet, o vídeo da música já foi visto milhões de vezes. Ele tem um poder de síntese impressionante.

VEJA SÃO PAULO – Apesar de tratar de um tema duro, o filme tem momentos de leveza. Como encontrou o equilíbrio?

ISA FERRAZ – As histórias engraçadas sempre eram dele. No auge da perseguição, ele brincava com a gente, com as crianças. Isso, para mim, era muito forte. Eu não queria fazer um filme trágico. A história é pesada “pra burro”. Entrevistei 31 pessoas e todas choraram, sem exceção. Eu poderia ter feito um mar de lágrimas. Não perguntei a ninguém sobre tortura, mas todos tocaram no assunto. Talvez pela intimidade que eu tinha com os entrevistados, criei um ambiente muito delicado no estúdio. Teve depoimento de duas horas e meia. É um material riquíssimo, que devo passar para a Comissão da Verdade [da Câmara dos Deputados]. Eu poderia ter feito outro filme, mas o Marighella não ia gostar.

Ouça a música de Mano Brown para o filme:

[youtube=https://www.youtube.com/watch?v=Sh66AcD3o6k&w=360&h=203]

 

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