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Impossibilidades

Por Walcyr Carrasco
Atualizado em 5 dez 2016, 19h45 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

Fiz uma operação de vesícula. Por um problema genético, a dita-cuja estava fora do lugar e o médico recorreu ao método tradicional. Dois dias depois, tive alta e estou em casa. A cada instante, fico surpreso com o número de pequenos gestos do cotidiano que se tornam impossíveis. Levantar da cama, por exemplo. Nos primeiros dias, era uma operação de guerra. Eu ficava no meio do colchão e me movia aos poucos, como um caranguejo. Levava o corpo até o lado esquerdo para não me apoiar no direito, que doía mais. Agarrava o criado-mudo com uma das mãos, jogava a perna esquerda para o chão e sentia tudo se mexer lá dentro. Só então levantava.

E me vestir? Minhas gavetas de cuecas e meias são baixas. Não consigo pegá-las. É preciso pedir a alguém. Qualquer coisa que caia no chão continua lá. E meus amados cachorros? Querem pular sobre minha barriga, porque sempre foram acostumados com isso, e deitar nela enquanto coço a cabeça deles. Tenho de mantê-los afastados. Outro dia estava no escritório. Loucas de saudade, as cachorras Isis e Morgana driblaram a empregada, subiram correndo e vieram pular em cima de mim. Eu fiquei girando a cadeira de um lado para o outro, fugindo dos saltos, com as duas correndo em torno. Pura comédia. Agora são trazidas no colo de alguém, faço carinho e depois me despeço.

Deitar demais faz a espinha doer. Sentar também. Às vezes desligo o celular, porque falar muito me cansa. E também me deixa exausto dar as mesmas notícias:

– Sim, estou bem. A evolução é muito boa. Só levarei mais um tempinho para voltar ao normal.

Médio. Não poderei carregar mais de 5 quilos por 45 dias. Devo evitar tumultos, bebidas. Alguns pontos se abriram, o que do ponto de vista médico é normal, mas devo trocar curativos. Minha funcionária, Denise, cuidou de uma senhora até a morte. Sabe fazer curativos, reanimação e tem curso de primeiros socorros. Descobri tudo isso agora, porém a vocação para carcereira eu já conhecia. Se estou dormindo, abre o quarto e troca meu curativo. Bota o relógio para despertar no horário do antibiótico para eu não esquecer de tomar. Embora reclame das vezes em que ela me tira de um bom sonho para inundar o corte de água oxigenada, penso: “Que sorte ter alguém assim!”.

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Ver televisão cansa, porque as posições possíveis são poucas. Ficar deitado também. Às vezes até dormir me deixa exausto, já que não posso deitar de peito para baixo, como estava acostumado. Descer a escada é algo que faço uma vez por dia. Saio o mínimo possível. E não leio tanto como gostaria porque, apesar de não fazer nada, tenho vontade de fazer menos ainda. Incrível, não?

Mas há momentos em que penso em algo mais profundo. Meu médico, o doutor Sérgio, é excelente. Fui operado num dos melhores hospitais do país, onde, além da qualidade, o conforto é total. Meu convênio cobriu a maior parte das despesas. E mesmo assim é difícil. Como será a recuperação de alguém que fica numa maca no corredor de um hospital, torcendo para que alguém lhe dê um copo d’água? E que, quando chega em casa, não tem quem possa lhe fazer uma sopinha?

Há tantas outras coisas! A gente nem nota os pequenos gestos do cotidiano. Quando se tornam difíceis ou até impossíveis, mesmo momentaneamente, é que se percebe como são fundamentais. Então, como será para quem perde essa possibilidade para sempre?

Uma operação, mesmo simples, pode ensinar muitas coisas. É bom aprender com isso.

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