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Pesquisa: 87% dos garçons que atuam em São Paulo vêm de fora da cidade

Aqui, eles encontram um mercado repleto de exigências, mas também de boas oportunidades

Por Daniel Bergamasco [colaboraram Arnaldo Lorençato, Mariana Gabellini e Taciana Azevedo]
Atualizado em 2 jan 2017, 17h18 - Publicado em 26 ago 2011, 15h40

Entre opções de penne, maccheroni e farfalle, o idioma italiano domina o cardápio do Aguzzo, em Pinheiros. Quando os pratos passam para as bandejas, porém, um sotaque bem brasileiro é que mostra sua força. Dos seus onze garçons e maîtres, seis são nascidos na mesma cidade: a distante Pedro II, no norte do Piauí.

+ Galeria de fotos: Pedro II, a capital brasileira dos garçons

+ A família veio em peso

+ Um golpe no alcoolismo

+ O garçom que se tornou presidente

+ O garçom que virou patrão de 200 pessoas

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+ Depois daquela briga

+ Conheça a capital brasileira dos garçons

“Nunca trabalhei em um lugar que não tivesse algum conhecido da terrinha”, diz Antonio Campelo, chefe da equipe, cuja trajetória ilustra bem a epopeia desses profissionais. Ele chegou aqui no fim da década de 80, após três dias de viagem chacoalhando em um ônibus. No primeiro ano, foi assaltado três vezes ao andar pelo centro com o dinheiro das gorjetas que recebia.

Sentia muita saudade da família, mas não desistiu. Apesar da experiência zero, logo arranjou serviço e entrou no mercado, trabalhando em casas como America, Piselli e Parigi. No emprego atual, ao qual já chegou como maître, contratou vários conterrâneos. Jaidan de Macedo, de 23 anos, é um deles. Dos seus nove irmãos, oito estão em São Paulo e atuam nessa área, que se, por um lado, é pródiga em oportunidades, por outro, requer disposição para jornadas de oito, nove, dez horas em pé, em geral com apenas uma folga semanal. “A exigência é grande, mas vir para cá ainda é uma opção comum para os jovens”, conta Macedo. “Muitos até me procuram no Orkut pedindo dicas.”

Difícil nos bastidores do Aguzzo é encontrar algum funcionário paulistano. “Sou o único”, afirma o chef Alexandre Romano, nascido no Jardim Europa. “Eles falam quase uma outra língua, e às vezes me pego repetindo para amigos expressões como ‘sujeito boca aberta’, que quer dizer uma pessoa abobalhada”, diverte-se.

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A diversidade de sotaques entre a turma das bandejas se repete em vários endereços. Um levantamento inédito feito por VEJA SÃO PAULO mostra quais são as pronúncias mais fortes desse mercado, que movimenta 8,6 bilhões de reais por ano (ou 2,4% do PIB local). No total, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes calcula que 8.000 casas sirvam 1,2 milhão de pessoas diariamente na cidade.

A pesquisa da revista, realizada entre maio e julho, ouviu as 600 destacadas no Roteiro da Semana de Vejinha, que representam o que há de melhor nas mesas da metrópole. Dessas, 372 forneceram suas listas de funcionários do salão, do cumim (ajudante) ao maître (supervisor), com a respectiva idade e a localidade de origem. Segundo o levantamento, apenas 13% dos garçons nasceram por aqui.

Fora da capital, o lugar que mais fornece mão de obra é a região chamada de Cocais, no Piauí. A Pedro II da equipe do Aguzzo está no epicentro desse fenômeno, sendo o município fornecedor de 5,1% dos profissionais das nossas mesas.

Com 37.000 habitantes e localizada a 200 quilômetros da capital, Teresina, a cidade se tornou o equivalente no ramo culinário à mineira Governador Valadares para quem vai tentar a sorte nos Estados Unidos. As vizinhas Piripiri e Piracuruca também aparecem entre as dez mais do ranking. “Com o sucesso de alguns pioneiros, cria-se rede de incentivos, como hospedagem e indicações de trabalho, para que outros daquela comunidade sigam o mesmo caminho”, explica a socióloga Sueli Siqueira, doutora em migração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Entre os facilitadores, há até uma linha de ônibus fretado que vem direto da região dos Cocais rumo a bairros específicos de São Paulo, como Campo Limpo, na Zona Sul, onde muitos dos piauienses fixam morada. São 48 horas de viagem. A passagem sai por 180 reais para vir e 200 reais para voltar (no segundo caso, ela pode ser adquirida em um boteco da Rua Paim, na Bela Vista). Se comprada com dois meses de antecedência, a passagem aérea Teresina-Guarulhos custa pouco mais do que isso, mas no ônibus não há quase limite de bagagem, o que facilita a vida de quem está de mudança.

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Na contabilidade por estados na pesquisa de VEJA SÃO PAULO, o mais expressivo é o Ceará, origem de 24,2% dos entrevistados. É de lá, de Cruz, no interior do estado, que vem o garçom José Caubi Araujo, de 35 anos, do requintado franco-italiano La Tambouille, no Itaim. “Aprendi muito, formei família e fiz amigos, mas comecei a guardar dinheiro para voltar”, diz ele, que chegou a São Paulo aos 18 anos. Seu objetivo é comprar uma boa caminhonete para transportar turistas estrangeiros em praias como Jericoacoara. Mas 400 reais do que recebe por mês já estão comprometidos. É quanto ele envia a cada trinta dias à sua terra. Com metade dessa quantia, consegue encher a despensa de comida para sua mãe e a sobrinha que mora com ela.

Equacionar o sustento cotidiano, a ajuda à família e a poupança para o futuro é um dos maiores desafios para esse pessoal. Os ganhos, no entanto, favorecem a matemática. É possível faturar entre 2.000 e 3.000 reais por mês nos endereços mais nobres da cidade, com direito a fazer refeições no emprego (não as iguarias do cardápio, mas o trivial preparado pelo mesmo cozinheiro). A título de comparação, psicólogos em médias e grandes empresas recebem aproximadamente 2.800 reais por mês, segundo aferição do instituto Datafolha.

A Região Sul do país também tem peso como celeiro de profissionais para o setor. De lá vêm 7,8% do total de garçons, mas o porcentual é bem maior nas churrascarias. O que chama atenção é que gaúchos são menos numerosos nas casas de carne (representam 12%) do que catarinenses (15%), em especial os do oeste do estado, na fronteira com a Argentina.

Dali de perto, do interior do Paraná, vem Jandir Dalberto, de 45 anos, que saiu de lá há mais de duas décadas, lavou pratos, serviu carnes e foi promovido algumas vezes, até se tornar, no início do mês, o presidente de operações no Brasil da rede Fogo de Chão. “Aqui, todos os executivos são gente que cresceu na empresa”, ele diz.

Há outras histórias de ascensão. A cantina Lellis, por exemplo, pertence a um ex-garçom baiano, que começou fazendo faxina nas madrugadas do Gigetto e hoje emprega 200 pessoas em seus negócios de São Paulo, Campinas e Curitiba. Muitos outros optam por montar seus negócios na gastronomia nos estados de origem, fazendo uso dos conhecimentos adquiridos aqui. Um caso recente: Piripiri ganhou no início do ano o Sushi Piri, especializado em culinária japonesa e fundado por um piauiense que atuou por seis anos em endereços paulistanos.

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Sejam quais forem as metas, o caminho para tentar atingi-las é feito de uma rotina em geral extenuante. Além disso, é preciso atenção ao treinamento. O Sinthoresp, sindicato da categoria, mantém uma escola para aprendizes, que forma de três a quatro turmas de quarenta pessoas por semestre. Mas, nas casas mais tradicionais, a falta de experiência costuma ser considerada uma vantagem, pela ausência de vícios que poderiam atrapalhar a lapidação do funcionário.

As regras são impostas logo de cara. Cabelo bem cortado, nenhuma barba e unhas feitas (se possível, na manicure) são obrigatórios. Não se pode usar perfume e é desejável não fumar. Se adquirem mau hálito, os garçons levam uma chamada clara do chefe. Em muitos lugares, o mesmo acontece se eles engordam, já que a ocupação sobrecarrega as pernas.

A concorrência também pode ser estressante. Cada vez mais, alguns contratantes dão preferência a jovens moderninhos de classe média, com suas tatuagens, que entram no ramo em número crescente. Entre os colegas, por várias vezes, a rivalidade entre estados é objeto de tensão. “Teve um rapaz que puxou a faca para o outro após uma piada sobre algum regionalismo”, conta Edgard Sader, dono do árabe Bambi, no Itaim.

No Dalva e Dito, de comida brasileira, no Jardim Paulista, um conflito recente acabou em cinco demissões. Tudo começou com uma bronca coletiva do chef Alex Atala após uma cliente reclamar que um membro da equipe, sem saber apontar qual era, havia sido desrespeitoso. Depois do sermão coletivo, alguém se vingou de forma extremamente grosseira: emporcalhou as paredes dos banheiros dos funcionários. A revolta foi geral e Atala decidiu dar 30% da gorjeta do dia aos faxineiros, os maiores penalizados com a sujeira. Sentindo-se prejudicados por embolsarem menos dinheiro, os cinco garçons deixaram seus uniformes e foram para casa. Acabaram sendo demitidos. Aos outros, a gorjeta descontada foi reposta.

Trabalho é trabalho e nenhum está imune a esse tipo de stress. Restaurantes estão entre as empresas sem espaço para desabafos. A orientação é jamais fazer os frequentadores perceberem qualquer mal-estar, mesmo quando algum consumidor antipático é quem faz a noite azedar. Tal serenidade exige válvulas de escape, e é nos momentos de lazer da turma que as raízes se mostram mais firmes no chão.

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Localizada na Avenida Nove de Julho, na Bela Vista, a casa de forró Kibexiga Show há dezoito anos é um dos points da categoria e recebe a cada dia, de quinta-feira a domingo, entre 1.000 e 1.300 pessoas. As atrações são bandas consagradas do gênero, como Limão com Mel, Calcinha Preta e Saia Rodada. Estima-se que 60% do público trabalhe em restaurantes. “Aqui dá muita paquera e até casamento, mas briga não tem”, diz o gerente, Jailson dos Santos.

A festa começa às 23 horas, mas só pega fogo depois da 1 ou das 2, quando os habitués estão, enfim, liberados do serviço. Outro lugar que se adapta aos horários tardios é a churrascaria Boi na Brasa, no centro, cujo principal atrativo, além da picanha com farofa (R$ 43,30, para duas pessoas), está em permanecer aberta até as 5 horas. E como se comporta o atendente quando assume o papel de comensal? “Exigente com o que come, mas generoso na caixinha”, afirma o churrasqueiro Erivelton Guimarães. “Sempre tem alguém que acaba de chegar de fora, se deslumbra com o lugar chique que o contratou e quer botar banca. Já vi cabra metido que disse: ‘E você chama isso de carne?’.” As esticadinhas pela madrugada depois do expediente são território propício para quem tende a exagerar, principalmente na bebida. “Trata-se de um problema frequente”, constata Jorge Rezek, médico do sindicato.

Somados os dissabores e as tentações, não faltam obstáculos ao objetivo de prosperar nessa carreira. Contudo, para o cearense Erivaldo de Sousa, de 40 anos, garçom do Bambi, os desafios mostram-se pequenos perto das oportunidades. Quando começa em emprego novo, ele logo estuda o cardápio. Agora, por sugestão sua ao patrão, toda a equipe do restaurante terá aulas de inglês, em preparação para a Copa do Mundo. São conhecimentos que alimentam a meta de, um dia, montar uma petiscaria. “É uma grande chance, que espero aproveitar”, afirma Sousa, resumindo a esperança de muitos de seus colegas.

 

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