(ivan@abril.com.br)
Vês, mãe, como ando gasto, eu, teu menino mais cuidado? Chego a uma idade que não alcançaste, e chego — seguro que sim — por teus cuidados, por tua sopa de tutanos, por tua galinha ensopada, por tuas batatas em rodelas, pelo caldo grosso do teu feijão.
Não esperavas, adivinho pelo olhar, estes meus quilos a mais, tu que me querias esguio como um artista de cinema e reto como um santo. não te preocupes, trago sob controle o colesterol, os açúcares, os índices bons do sangue, e convivo bem com a balança. Descansa, tenho sido reto. Sigo aquela trilha a que nos obrigaste, sem necessidade de deuses que impeçam ou leis que obriguem. Dos teus oito filhos, um terá se tornado mais velhaco do que esperavas, do que esperávamos, mas isso foi depois que partiste, esqueçamos.
Não, não tenho acompanhado a política, não mais. Gostavas, não é?, como gostavas! ias aos comícios do Brigadeiro, “é bonito e é solteiro!”, gritavas em coro aquele slogan sem compromisso, e me arrastavas menino em meio à onda de lenços brancos, seguro firme pela mão para não ser engolido pelo mar, e me arrastaste durante alguns anos pelas campanhas dos impolutos, “Milton Campos! Milton Campos!”, gritávamos, mas aquela morte de um Getúlio Vargas acuado me empurrou para o outro lado e nos separou nas barricadas. É isso, mãe, já não frequento barricadas porque não há mais idealistas impolutos de lado nenhum.
Partiste cedo demais. Que são hoje 60 anos? Desses, 38 viveste para nós: casada aos 22, mãe aos 23, e mais sete vezes mãe. Que sonhos de moça tiveste? ah, isso calavas. no teu armário e em tuas gavetas garimpávamos aqui um lenço de seda pintado a mão no estilo art nouveau, ali um gancho de revirar sobrancelhas, um rímel, uma estola de raposa, enchimentos de cabelo para armar penteados, um chambre de seda rosa, uma touca de melindrosa, revistas de cinema A Cena Muda. antes de nós, sabias das estrelas e seus filmes, Jean Harlow, Gloria Swanson, Greta Garbo. a que renunciaste, podes agora dizer? nunca mais passeios, matinês? Complicado, sei, com oito filhos. a socialite que fazia chapéus de festa e te conheceu quando moça arregalou meus olhos de jovem: “Você é filho de Divina? Foi a moça mais linda que eu vi na vida!”. Pequenos, não percebíamos na época essa beleza vistosa, dos outros, o que víamos era a mãe, beleza nossa, em dura faina. Temo que a tenhas consumido, por nós, nas mamadas, nas fraldas, na cozinha, no tanque, no ferro de passar, na faxina, na enceradeira, na costura noturna, no socorro ao nosso bê-á-bá.
Levei-te algumas vezes ao cinema, já moço, lembras?, quem sabe no intuito tardio de amenizar tuas renúncias. a volta de E o Vento Levou, que não pudeste ver quando lançado, frustração que confessavas às visitas de domingo. O Bom Pastor, com Bing Crosby, padrezinho cantor. Por Quem os Sinos Dobram, um Gary Cooper tão magro! Foi engraçada aquela vez que te levei para conhecer Marlon Brando, um novo estilo de homem e de ator, em Um Bonde Chamado Desejo, e teu comentário revelou-me que tinhas olhos para escondidos atributos: “Eu cá não gosto desses homens muito bundudos, não”. “Mamãe!”, falei escandalizado, e rimos, rimos, ríamos no bonde de volta para casa.
Mãe, tão cedo foste que não pudeste conhecer uma quantidade de netos, bisnetos, enfeites da vida. não conheceste minhas filhas, meus netos, tesouros, amores. não sentiste a dor de perder filhos, e dois irmãos já nos faltam, enquanto nós, ai de nós, a perdemos todos os anos neste segundo domingo de maio.