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Linda manhã

Confira a crônica da semana

Por Ivan Angelo
13 abr 2017, 20h05

Uma dessas manhãs que nada poderia estragar: luminosa, friozinho ameno, pessoas dividindo quase íntimas a delícia. O sol de outono, muito baixo, enche os carros de luz e calor através do para-brisa, bate nos olhos, obrigando os motoristas a baixar o quebra-sol. Adiante, sinal quebrado, o trânsito é controlado por guardas, braços e apitos ativos. Todos param, nem por isso contrariados, porque é domingo, e a manhã, gloriosa. Os vidros das janelas dos carros ao meu redor estão arriados, indício de que as pessoas atenderam ao apelo acariciante da natureza. Um rapaz no carro ao lado do meu põe a cabeça para fora da janela, expõe o rosto ao sol, olhos fechados de prazer, sorriso beirando a beatitude. Vendedores ambulantes de coisas que buscam alguma serventia se movimentam entre os carros, e fracassam na sua tentativa de distrair as pessoas do prazer de simplesmente estar ali.

Olho em volta e o louro intenso de uma cabeleira de mulher captura meus olhos no espelho retrovisor. Farta, cuidada, faiscando ao menor movimento, a cabeleira eclipsa a mulher, que está sozinha ao volante. No primeiro momento, só existe aquela cabeleira hipnótica, incendiada pelo sol. Vencido o sortilégio, posso ver: a mulher é moça e tem a beleza simétrica das louras. Mas, ó meu Deus, que vincos são esses que se formam na testa? Que contração aperta esses olhos, repuxa os cantos da boca, estica os lábios que se fecham apertados? E esse nariz vermelho, e de repente socos compassados no volante? A moça chora com raiva no carro atrás do meu. Lágrimas brotam e escorrem cintilando ao sol como pequenos cristais.

Inquieto e impotente, contemplo o drama pelo espelho retrovisor à minha esquerda. Seria imprudência sair do carro e ir até lá, oferecer ajuda. Se os guardas liberassem a passagem, nem a manhã gloriosa me livraria do buzinaço. O gesto de boa vontade poderia, por outro lado, ser visto como intromissão indevida em momento tão pessoal, invasão daquele refúgio em que ela se sentira segura para extravasar. Melhor ficar quieto, em muda e encasulada solidariedade. Seria caso de morte? Não, mais provável que não, a crise havia começado diante dos meus olhos, alguma revolta fora crescendo dentro dela naquele exato momento, daí os socos no volante. Problemas com filhos? Não, muito nova para ter filhos já problemáticos. Doença na família? Podia ser, e isso sempre dói. Dinheiro? Pouco provável, ela instalada num carro de luxo cujo brilho da pintura revelava uso recente, cuidados. Indignação por assédio sexual do chefe? Ela não iria esperar o domingo para dar socos no volante. Namorado? Isso, namorado! Mas como alguém, mesmo tosco, poderia magoar tal beleza?

Vem chegando um vendedor de flores, oferecendo-as de janela em janela dos carros. Num impulso, compro um buquê farto, colorido, abro minha porta, corro até o carro de trás, derramo as flores no colo dela e digo:

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— Não chore. A manhã está linda! Será que ele merece? Será? Vai dar tudo certo, não chore.

Corro de volta, com o espanto dos seus olhos azuis gravado ainda nos meus olhos, entro no carro, o guarda apita para avançarmos, engato a marcha, tenho tempo de vê-la pelo retrovisor, sorrindo entre lágrimas, surpresa, balançando a cabeça como quem diz “que doido”, e me acena um adeus agradecido.

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