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Ele era feliz?

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 15h44 - Publicado em 9 ago 2013, 17h28

A chuva pingando desenterrou meu pai. Essas seis palavras que abrem o poema Rua da Madrugada, de Carlos Drummond de Andrade, ressoaram em meu espírito na tarde chuvosa de agosto. Fios de água escorreram pelas faces das lâminas de vidro da varanda. Meu pai veio me visitar, sem aviso.

Tantos anos se vive com um pai na mesma casa e alguma coisa dele sempre nos escapa. Era feliz? Desenterrado, passeia invisível pela sala, sem respostas. Da nossa infância com ele ficou aquele homem que nem sempre estava, que mandava acima de qualquer possibilidade de não, que se tornara ameaça materna (“vou falar com seu pai”), que punia com vara, que de nós esperava não menos que merecimento. Eram severos os pais quando todos eram mais pobres no país.

De que gostava, com que se divertia? Havia jogos de truco, blefes gritados invadindo nosso sono. Bastava isso? Futebol? Torcia em silêncio pelo Vila Nova numa família de criançada atleticana. Política? Não podia votar, militar que era, e calava-se, preferências secretíssimas em ninho de udenistas. Bichos? Criou cachorros (dois pastores, treinados por ele, não avançavam num prato de carne colocado diante do focinho se ele não autorizasse), coelhos (branquinhos, furavam o quintal sob seu cercado e comiam a horta, até que os cachorros os comeram), pombos (enormes, de raça, vendeu o pombal e não recebeu) e passarinhos (alguém, na madrugada, quebrou as gaiolas e roubou ou libertou os passarinhos). Nem danças, nem bebidas, nem cigarros, nem leituras… Seria feliz? Como poderá um filho saber se um pai, esquivo no seu amor feito de obrigações, é feliz?

Sargento de dia, chofer de praça à noite; dormia nos intervalos. Éramos condenados ao silêncio ou à rua. “Vão brincar lá fora!”, mandava a mãe, zeladora do sono dele. Ela o amava? Eles se amavam? Questões impensáveis, só muito mais tarde acordadas em filhos maduros de amores. Davam prazer um ao outro? Pergunta da qual oito filhos não são resposta. Antigamente, os pais apenas convocavam a cegonha.

Só podia ser apaixonado pela sua Divina, nome que repetia com visível gosto e que no começo resumia para Diva — sendo os nomes já um reforço para a sua missão de amá-la. Ela o amava? “Divina foi a mulher mais linda que eu já vi, belíssima!”, disse-me uma chapeleira da alta sociedade, que a conheceu ainda mocinha; romântica, a julgar pelas leituras, pelos filmes preferidos e pelas relíquias guardadas. Seria aquele o seu príncipe? Talvez mais respeitasse aquele homem responsável, seguro cavaleiro, incansável no seu papel de provedor.

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No dia em que ela morreu, ele me chamou para conversarmos na janela do corredor do hospital — e acendeu um cigarro! Nunca o havíamos visto fumar! Foi a única conversa em que o tive exposto, ferido, vulnerável. Fumava um pouco, sim, confessou, mas era a única coisa que fazia escondido “de Divina”. Trabalhando à noite, foi tentado muitas vezes. O seu freguês quase diário, um boêmio rico que levava a cabarés, cassinos, restaurantes, rendez-vous, oferecia-lhe fichas de jogo, bebidas, mulheres e ele nunca — nunca! — aceitou nada. Ficava lá embaixo, dentro do carro, cochilando, e a única “traição a Divina” era fumar de vez em quando, para passar o tempo.

Murmuro para o meu fantasma, compreendendo-o, outros versos de Drummond: “Guardavas talvez o amor / em tripla cerca de espinhos”. E o deixo ir-se.

e-mail: ivan@abril.com.br

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