Não é sempre que vou para o serviço a pé. Quiçá uma vez por semana, ou um pouco menos, mas, quando o faço, isso me deixa feliz, revigorado e encantado, até. Alguém já escreveu que nunca ninguém se arrependeu de fazer uma caminhada ou tomar um banho. É uma frase sábia. Minha casa é próxima ao cemitério de Pinheiros, ali onde a Rua Henrique Schaumann se divide e acaba.
O nome do bairro é pouco conhecido. Chama-se Jardim das Bandeiras. Mas ladeia outros, mais badalados, como a Vila Madalena e o próprio bairro de Pinheiros. Este se estende até a Marginal, atrás do edifício da Editora Abril, onde trabalho. Dá uma meia hora a pé, 31 minutos de acordo com os cálculos do Google Maps. Mas é descida. Atravesso a Rua Patápio Silva, negocio os 94 graus da escadaria bonita e bem grafitada (mas suja e malcuidada) até a Rua Aspicuelta e estou na Vila Madalena. Vou embora até o fim dela.
Esse caminho me permite acompanhar a abertura dos restaurantes pela manhã. Adoro o movimento dos garçons, que colocam mesas na frente dos botecos e toalhas limpinhas nelas, pelo menos nos melhores. Passo em revista o Leôncio, o Salve Jorge, o São Cristovão e o Martin Fierro, para mencionar os mais célebres dos estabelecimentos. Preparam-se para mais um dia e outra noitada de vida social animada e intensa. Vila Madalena é uma festa.
Nada disso existia em 1985, quando me mudei para a região. Você talvez não acredite, mas as noites do bairro eram despovoadas e tranquilas. Havia um ou outro bar naquele tempo e nenhum trânsito de automóveis. Vejo o movimento hoje com satisfação. Desde meus primeiros anos ali, suspeitei que a vocação da Vila Madalena fosse mesmo essa. Havia já um charme artístico e intelectual que lembrava um pouco North Beach, em São Francisco, de onde Jack Kerouac saiu para escrever Pé na Estrada, ou Berkeley, na Califórnia, ou Greenwich Village, em Nova York.
São Paulo pedia um bairro udigrúdi e hippie nos anos que se seguiram à ditadura. Gosto de pensar que dei uma pequena contribuição à boemia na Vila Madalena. Tomei anos de cerveja. Frequentei botecos e pequenos armazéns que mais tarde se tornariam monumentos da vida social paulistana, como o Jacaré e a Mercearia São Pedro. Joguei muita conversa fora.
Pensei nisso tudo, na semana passada, ao alcançar a Avenida Brigadeiro Faria Lima, já no bairro de Pinheiros, ainda a caminho do meu serviço. Chegara ao Largo da Batata, há anos em obras. Os destemidos arqueólogos paulistanos aproveitam para fazer ali uma escavação. Desenterraram uma camada de residências da década de 30 derrubadas para a construção de edifícios nos anos 1960. Mas antes disso, ainda no século XIX, havia no largo uma taverna, segundo li. Chegaram a essa conclusão com base em garrafas de vinho do Porto e cervejas holandesas ali encontradas. Os estudiosos acreditam que o largo era uma parada de tropeiros que vinham do sul do país e seguiam para Sorocaba, um importante mercado em séculos passados. Mas antes era preciso tomar um trago. Afinal, ninguém é de ferro.