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Chato, e querido

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 18h16 - Publicado em 26 fev 2011, 00h28

O problema dos chatos é que demoram demais. Demoram numa conversa casual de esquina, demoram ao telefone, demoram a contar um caso, uma piada, ou a descrever uma cena, demoram a se despedir. Não sabem ir embora. Têm medo de ficar sozinhos consigo mesmos e se chatear. Sabem do que são capazes. Como disse o poeta Dylan Thomas: “Alguém está me enchendo o saco. Acho que sou eu”.

O ponto crucial da nossa relação com o chato é o tempo, o nosso tempo, que prezamos demais. O chato não tem esse problema, ele despreza o tempo. Não quer transformar o tempo em dinheiro, mas em conversa, uma lenta conversa na qual é protagonista. Não há chatos calados. Se um chato ficasse calado, você não saberia jamais que está diante de um deles.

Exceção é o chato suspiroso. Conheci um. Falava pouquíssimo, mas suspirava sem parar, dos suspiros fundos e trêmulos aos que se confundiam com o ato de expirar, só que se ouviam. Suspiros eram para ele uma forma de conversa, respondia com suspiros, comentava com suspiros, concordava com suspiros, alguns tão fundos que pareciam gemidos. Era como se dissesse que nos poupava o transtorno de contar suas angústias e as manifestava em suspiros. O último deve ter sido também de alívio.

Poder-se-ia supor que as pessoas bonitas não chateiam, porque enfeitam um ambiente. Não é verdade. Chatos não têm encantos, mesmo quando têm beleza. Conheci um desses, bonito, olhos azuis, algum dinheiro, mas… Não conseguia que as mulheres ficassem com ele por mais de uma semana.

Quando é que uma pessoa começa a ficar chata? Como se aprimora? Uma criança não é chata, no sentido do chato adulto. É chamada de chata por causa de distúrbios de comportamento, como birra ou turbulência, não por se alongar explicando uma coisa, ou por seus assuntos serem maçantes. Nunca são.

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A gente conhece os chatos já prontos, não em formação. Talvez houvesse tempo de recuperá-los para o convívio diário e prazeroso, se fossem identificados prematuramente. Está aí um ramo ainda virgem da psicologia.

Entre os tipos humanos, o grupo mais intrigante é provavelmente o dos chatos queridos. Admite-se que são ótimas pessoas, generosas, prestativas, solidárias, mas a convivência com elas é penosa. Há pessoas difíceis que não são necessariamente chatas. Os briguentos, por exemplo, os instáveis, os agressivos, os grilados, os viciados, os consumistas compulsivos, os maníacos, os mal-habituados, os autoritários, os ciumentos — todos têm momentos insuportáveis, mas não são aborrecidos “full time”, não carregam aquele peso que transborda do chato.

Os chatos queridos ajudam quanto podem a quantos pedem. Podemos contar com eles. Mas não conseguimos ficar à vontade por muito tempo na sua companhia; vai surgindo em nós um fino, ínfimo padecimento, que cresce quanto mais inescapável é a situação. Depois de nos livrarmos deles, com uma desculpa qualquer, sentimo-nos aliviados, mas levemente culpados, porque sabemos que são boas pessoas, e só a nossa impaciência as desmerece. Ao contrário, quando nos livramos dos chatos que não têm atenuantes, o sentimento é de triunfo, com música de Wagner ao fundo.

Os queridos, quando morrem, são pranteados em enterros concorridos; no velório, são lembrados seus melhores momentos. Sentimos saudade. Não talvez dos seus momentos de aplicado cumprimento do seu papel no mundo (são predestinados!), mas daqueles momentos de presteza e bondade com que compensaram sua inglória missão.

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