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Repórter avalia como último cliente é tratado em três bares da cidade

Muitas casas prometem funcionar até a partida do derradeiro freguês, mas, quando chega o avançado da hora, a história muda

Por Daniel Salles
Atualizado em 1 jun 2017, 18h40 - Publicado em 5 nov 2010, 23h47

Foi um balde de água fria. “O papo está muito bom, mas agora nós queremos dormir.” Sem pausas, como em um desabafo, a fala saiu da boca do dono do bar All of Jazz, na Vila Olímpia, para onde me dirigi no sábado passado (30). Mas a frase não soou totalmente inesperada, pois passava das 3 horas da manhã e eu era o único cliente. Meu objetivo foi exatamente este: visitar casas que prometem atendimento até o último freguês e conferir o tratamento devotado a quem não tem intenção de pedir a conta. Dos 280 bares publicados no Roteiro da Semana de VEJA SÃO PAULO em esquema de rodízio, quase sessenta afirmam funcionar dessa maneira. Para o cliente, passa a impressão de que ele pode ficar ali o tempo que quiser, ainda que o sol comece a raiar do lado de fora. Mas não é bem assim, como pude constatar.

Quando girei a maçaneta da porta envidraçada do All of Jazz, era 1h23. Decorada com fotos de lendas como Miles Davis e Charlie Parker, a pequena casa promove shows há quinze anos de segunda a sábado. Naquela noite, a trilha sonora estava a cargo do pianista cubano Ricardo Castellanos, auxiliado por contrabaixo, bateria e saxofone. Atenta, a plateia era composta, além de mim, por duas mulheres e cinco homens — um deles, aboletado no balcão, empenhava-se em esvaziar uma garrafa de uísque antes do acorde final. “A apresentação termina lá pelas duas”, apressou-se a informar uma das duas garçonetes, assim que cheguei. Pareceu o anúncio de um serviço lento e mal-humorado. Justiça seja feita: até as 2h57, quando o show havia acabado e as luzes estavam acesas, elas continuaram anotando meus pedidos. Sem cara amarrada, mesmo quando, já de chinelos, passavam um esfregão em volta da minha mesa. É de supor, portanto, que o expediente da dupla teria se estendido ainda mais caso o proprietário, sempre presente, não entrasse em cena e me mandasse embora.

Na minha missão, fui a outros dois bares. Para se livrar de fregueses que teimam em esticar a farra, a Cervejaria Patriarca, na Vila Madalena, visitada na quinta (28) às 23h57, adota três táticas. Todas deixam no ar um clima de constrangimento. E me deram vontade de estender a noitada ainda mais. De birra. A primeira: anunciar o fechamento da cozinha. Quando os garçons tiraram essa carta da manga, faltava pouco para 1 hora e a clientela se resumia a treze pessoas, espalhadas ao redor de cinco mesas. Surpreso, um casal de gordinhos pediu uma costela no bafo, que chegou rapidamente num réchaud estalando de quente e deixou o ambiente esfumaçado. O segundo estratagema, usado por volta da 1h30: noticiar o encerramento do bar, oferecer a última bebida e trazer a conta. “Mas e a saideira da saideira? Vocês não funcionam até mais tarde? Terei de dormir agora?”, tentei argumentar. Com cara de pouquíssimos amigos, um funcionário respondeu: “Senhor, pode acertar? Precisamos fechar o caixa”. Dez minutos depois, começaram a empilhar as cadeiras, trancar as janelas e apagar boa parte das luzes. Os funcionários desapareceram do salão. Sozinho no escuro, temi ser obrigado a passar a noite por ali e aceitei a derrota. Não encontrei ninguém para abrir a porta, felizmente destrancada. O relógio marcava 2h20.

Àquela altura, o vizinho bar São Cristovão era um dos poucos endereços da Vila Madalena que ainda aceitavam clientes. Não tive dificuldade para encontrar uma mesa ali — dos 120 lugares do estabelecimento, apenas dezoito estavam ocupados. O problema foi conseguir a atenção dos funcionários, que demoraram quinze minutos para me atender. Não dá para esperar muito da cozinha durante a madrugada: o caldinho de feijão-carioca chegou à mesa aguado e o penne ao molho de tomate e manjericão estava ácido demais. São deslizes raramente cometidos em outros horários.

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Cervejaria Patriarca 2190
Cervejaria Patriarca 2190 ()

O desânimo dos garçons parecia espelhar às avessas a disposição dos frequentadores. Às 3h18, distraído com os versos da canção ‘Ligia’ na voz de Chico Buarque, fui surpreendido pela algazarra promovida por um casal de cerca de 30 anos. Num tom embargado e em meio a alguns tombos, a dupla entoava um ‘Parabéns a Você’ com direito a bolo de chocolate providenciado pela casa. O aniversariante era o manobrista do estacionamento ao lado, velho conhecido da dupla e que em seguida voltou ao batente.

Fingi não acompanhar a cena, temendo ser chamado a participar da comemoração. Não deu certo. “E aí, parceiro, quer um pedaço de bolo?”, perguntou o trôpego freguês. Recusei, sem muita paciência. Mas ele estava empenhado em sociabilizar e me levou um chope. “Valeu, parceiro”, agradeci, resignado com a crescente e grudenta aproximação. Por volta das 3h40, nova abordagem: “Se eu estivesse com meu pandeiro isso acabava em um pagode, moleque!”. “Sorte a minha, moleque”, balbuciei. Quando o alcoolizado e derradeiro casal resolveu enfim ganhar a rua eram 4h25. A conta havia sido acertada, as luzes estavam acesas e as cadeiras, sobre as mesas. Era a deixa para tomar o meu rumo. O garçom Álvaro Ayron saiu antes de mim, apressado. “Moro em Mogi das Cruzes e o último trem sai às 4h40”, explicou.

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