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A mulher consumida

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 12h23 - Publicado em 13 jun 2015, 00h00

Como a câmera da televisão brasileira “olha” o corpo da mulher? Cabe fazer uma ressalva: não de toda mulher, nem de todos os canais, nem a todo momento. Mas mesmo as emissoras mais discretas, e não por isso menos expostas à galhofa, têm no DNA aquela espichada de olho. Não fogem de uma oportunidade, e até a criam, ou aproveitam as que se oferecem. Só para dar um exemplo: aqui, os programas de apresentadores com auditório e palco, copiados de históricos modelos americanos, não dispensam aquelas bailarinas rebolativas de braços ao vento. Nos originais não havia tais moças, aqui se tornaram obrigatórias, antes mesmo das chacretes. E para quê, hein? Hein?

Volta a pergunta: como a televisão olha o corpo de escolhidas mulheres, tipo “Vai, Verão”?

Olha-o como objeto de consumo. Como o automóvel dos comerciais. Repare na maneira como o descreve. O design, em uma tomada de média distância. Depois, detalhes. As partes mais atraentes. Os faróis. Os volumes. A traseira. A arrancada, as curvas, a parada. Gostou?

Com que objetivo?

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Vender o novo modelo, estimular o desejo, criar no espectador a necessidade de obter um objeto daquele modelo, encorajá-lo a descartar o usado que tem em casa.O olho da câmera é masculino. Onde ele para, no que ele busca, sente-se até a esticada de pescoço. Foi um leitor, não uma leitora, quem me escreveu reclamando dos closes invasivos nas modelos dos programas. A invasão, meus caros, se é ofensiva e até obscena nos reality shows tipo BBB, acontece também, e difere apenas pela duração, nos programas de auditório, nas telenovelas, pegadinhas e – incrível – muitas vezes até na cobertura de jogos esportivos femininos.

O olhar das câmeras reflete o modo como muitos de nós – infelizmente, muitos – nos comportamos com relação ao sexo feminino: oportunistas, aproveitadores, voyeurs.

Esse olhar chegou com os europeus. Entre os índios pré-cabralinos não havia voyeurismo, já que não havia partes indevassáveis nem amores escondidos. Pero Vaz de Caminha documentou esse olhar quando descreveu em carta ao rei de Portugal as graças das índias, “que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”. Como uma câmera de televisão de hoje faria, sem pudor.

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Coerentemente, a mesma câmera guarda certa discrição quando passa pelos corpos masculinos. Ou guardava? Talvez esteja na hora de prestarmos um pouco mais de atenção nisso. De qualquer forma, as profissões de cameraman e editor de imagens ainda são predominantemente masculinas, e pode ser que eles queiram deixar claras as suas escolhas. Algo como “não me confunda”, e tome mulher melancia, uva, pêssego, o cardápio inteiro.

Nossa televisão – estou falando sempre dos canais abertos – é mais indiscreta do que a europeia ou a americana. O olhar da câmera nos Estados Unidos reflete o da sociedade, que considera grosseria uma pessoa demorar o olhar sobre outra na rua. Qualquer invasão é desrespeito. A TV aberta, então, não pode devassar, não pode oferecer o cardápio brasileiro.

Comparando, nosso povo é bastante resumido de roupas. Mas não é esse natural que o olho da câmera procura, ele busca efeitos. Nem mesmo a variedade étnica lhe interessa, ou interessa a quem olha por trás da câmera. Ele elege modelos do seu gosto e impõe: eis como deve ser a bela. Molda uma aloirada bombada e diz: eis a gostosa. Criador da figura, acha-se com o direito de devassá-la.

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