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Por Arnaldo Cheixas
Terapeuta analítico-comportamental e mestre em Neurociências e Comportamento pela USP, Cheixas propõe usar a psicologia na abordagem de temas relevantes sobre a vida na metrópole.
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Esquiva

Miguel, meu paciente de longa data, entrou na sala e começou sua sessão da forma habitual. Sentou-se no sofá, tomou dois goles de água, desligou o celular, olhou pela sacada o horizonte do sol nascente e suspirou profundamente. Contou um pouco dos acontecimentos mais relevantes da última semana e deu ênfase àquele que considerou ser […]

Por VEJASP
Atualizado em 26 fev 2017, 21h06 - Publicado em 27 ago 2014, 22h11

Girl Covering Eyes

Miguel, meu paciente de longa data, entrou na sala e começou sua sessão da forma habitual. Sentou-se no sofá, tomou dois goles de água, desligou o celular, olhou pela sacada o horizonte do sol nascente e suspirou profundamente. Contou um pouco dos acontecimentos mais relevantes da última semana e deu ênfase àquele que considerou ser mais significativo, neste caso sua postura com um colega de trabalho, Antônio.

Miguel elaborou há três meses um relatório técnico com algumas imprecisões que atrapalharam o trabalho subsequente feito por Antônio. Ao perceber os problemas com o relatório, Antônio tentou falar com Miguel a respeito. Só que ele deu um jeito de desviar a conversa para outro assunto. Isso aconteceu porque Miguel sequer queria ter feito este relatório, tanto porque já estava sobrecarregado de serviços como porque precisou buscar informações pulverizadas em diferentes documentos e departamentos da empresa. Era uma tarefa sacal e gigantesca. Este cenário tornou a elaboração do relatório um trabalho extremamente aversivo. De tão aversivo, Miguel procurou livrar-se dele o mais rápido possível e sem executá-lo com qualidade. Mas isso só adiou o enfrentamento do problema porque Antônio dependia desse relatório para entregar um projeto que já estava sendo cobrado pela diretoria da empresa.

Desde esta tentativa frustrada de Antônio em conversar com o amigo, Miguel passou a se esquivar até mesmo da presença de Antônio, tudo para não ter de lidar novamente com o valor aversivo que aquele relatório adquiriu para ele. Passou a chegar atrasado para não encontrar Antônio na copa do setor. Deixou de usar o toalete do andar e passou a descer dois andares para isso. Não foi mais almoçar com os amigos de departamento. Alterou a volta para casa para uma linha de ônibus com trajeto mais longo e menos confortável. Durante o dia, passou a usar fones de ouvido enquanto ficava em sua mesa. Finalmente, parou de frequentar o futebol semanal da empresa…tudo para não encontrar Antônio e não ter de lidar com o problema que seu relatório se tornou. Tal qual uma criança que pensa não estar sendo vista pelos adultos ao colocar as mãos sobre seus próprios olhos após fazer alguma arte, Miguel achava que não seria visto por Antônio ou por seus diretores e que o problema com o relatório se resolveria automaticamente, como que por milagre.

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De tanto gastar energia em se esquivar, Miguel viu sua produtividade cair e seu estresse aumentar, tanto no ambiente de trabalho quanto fora dele. Passou a comer menos e a dormir pouco. Voltou a fumar. Quando o telefone tocava, mesmo o de sua casa, ele sentia calafrios por achar que pudesse ser Antônio em busca de informações sobre o relatório. Sonhou com a capa do relatório diversas vezes. A esquiva foi tão grande que nem em sua terapia ele compartilhou a situação, desde três meses atrás até a sessão de hoje.

Miguel começou a chorar e reclinou sua cabeça no braço do sofá: “Eu não aguento mais”. Só hoje ele se deu conta do quanto aquela situação o fazia sofrer e do quanto, por causa dela, ele havia extrapolado todos os limites do bom senso. Isso porque ele acabara de cancelar a adesão de sua família para a próxima viagem de confraternização da empresa, novamente para não encontrar Antônio que, de amigo, passou à condição de “personal” fantasma. Seu cotidiano se desestruturou por conta de um relatório que, embora trabalhoso, não lhe tomou mais do que três semanas de dedicação e para o qual ele poderia ter solicitado ajuda.

Após terminar seu relato e ainda com a cabeça reclinada no braço do sofá, Miguel concluiu: “Lidar com problemas às vezes machuca mas esquivar-se deles machuca muito mais.”

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