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Por Arnaldo Cheixas
Terapeuta analítico-comportamental e mestre em Neurociências e Comportamento pela USP, Cheixas propõe usar a psicologia na abordagem de temas relevantes sobre a vida na metrópole.
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Sobre como ofensas atrapalham nas discussões

Reclamar do atendimento de um estabelecimento comercial ou de uma repartição pública, conseguir que os filhos sigam instruções, negociar responsabilidades numa colisão entre carros, manifestar insatisfação com o comportamento de alguém, reivindicar melhores condições de trabalho, discutir uma ideia. Por que há discussões nas quais as emoções afloram de tal maneira que acaba inviabilizando a […]

Por VEJA SP
Atualizado em 26 fev 2017, 22h12 - Publicado em 15 abr 2014, 20h09

Reclamar do atendimento de um estabelecimento comercial ou de uma repartição pública, conseguir que os filhos sigam instruções, negociar responsabilidades numa colisão entre carros, manifestar insatisfação com o comportamento de alguém, reivindicar melhores condições de trabalho, discutir uma ideia. Por que há discussões nas quais as emoções afloram de tal maneira que acaba inviabilizando a resolução do problema abordado?

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A razão porque isso acontece é complexa. De modo abrangente, pode-se dizer que influenciam muito nesse processo as expectativas em relação àquela situação e as insatisfações acumuladas na história prévia das pessoas envolvidas. Os sentimentos presentes em situações de afrontamento normalmente são raiva, tristeza, frustração. Em muitos casos é compreensível a explosão emocional numa situação de conflito, como quando vemos um usuário do SUS gritando no hospital para garantir atendimento para si ou para alguém próximo. Há casos, porém, nos quais a manifestação das emoções, a depender de como ocorre, acaba por atrapalhar na resolução dos problemas. Embora o motivo para que isso ocorra seja complexo, intercruzando fatores sociais com fatores individuais, destaco aqui um elemento simples que é o detonador de muitos casos de fracasso na resolução de um problema: a adjetivação pessoal na fala.

+ É preciso saber dizer “não”

A fala é um comportamento verbal. Parte significativa das interações humanas é de natureza verbal. O comportamento verbal é do tipo voluntário, ou seja, ele não ocorre como consequência inequívoca de um evento simples do ambiente (comportamento involuntário). Sua ocorrência depende da história de interação do indivíduo com o ambiente. Um comportamento verbal tende a se repetir quando a consequência produzida por ele é agradável ao emissor ou quando ela evita ou elimina uma condição aversiva para ele. Em qualquer caso dizemos que aquele comportamento foi reforçado (porque tende a se repetir em situações similares) pela consequência que produziu.

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+ Como controlar o estresse no trânsito

No ambiente de trabalho, imagine um colega que executa determinada tarefa de modo equivocado, pelo menos aos seus olhos. Você espera que ele a execute de maneira diferente. Você pode se dirigir a ele e dizer: “Vi que você registra a venda nos dois sistemas para garantir que a informação chegue ao departamento de contabilidade. Na verdade, basta registrar uma única vez porque os dois sistemas são integrados. O que você acha?” Nesse caso, você se ateve à descrição do comportamento do outro e propôs uma alternativa à qual ele pode aderir ou não. Em casos assim, é provável que o outro acolha seu apontamento e colabore na construção de uma solução. Mas imagine que você apresentasse o problema dessa outra maneira: “Cara… você está sendo idiota registrando a mesma informação duas vezes. Está perdendo tempo e atrasando o trabalho de toda a equipe por isso.” Provavelmente seu interlocutor deixou de processar o que você disse depois da palavra “idiota”. É ela que fica reverberando em sua consciência. Mais que isso, ela evoca sentimentos negativos, como raiva e frustração. Diferentemente do primeiro cenário, é mais provável nesse caso que o interlocutor passe a adotar uma postura defensiva, justificando-se sistematicamente (o que atrasa a construção da solução para o problema) ou, alternativamente, ele pode expressar sua raiva contra-atacando você com novas ofensas. De qualquer maneira, a resolução para o problema fica mais custosa e demorada. Há, ainda, um efeito colateral desse tipo de situação. No caso do indivíduo que adota postura defensiva diante da ofensa recebida, há um registro emocional aversivo dessa experiência em seu sistema nervoso (memória). Esse registro emocional está completamente vinculado ao emissor da ofensa. Dali em diante, por um processo de generalização, qualquer situação trazida pelo mesmo emissor será percebida como aversiva. Os desdobramentos são sempre ruins.

+ Ansioso? Uma lição do surfe para o cotidiano

Um exemplo muito marcante de como a adjetivação ofensiva inviabiliza a resolução de um problema ou a discussão de uma ideia vem de uma edição de 1994 do programa Roda Viva, da TV Cultura, com o governador Orestes Quércia, então candidato à presidência da República. Questionado pelo jornalista Rui Xavier sobre acusações de enriquecimento ilícito, Orestes Quércia (pouco habituado a questionamentos) passa a ofender sistematicamente ao jornalista. São quase três minutos de ofensas. A partir de certo ponto, o jornalista, contagiado pela ira do entrevistado, passa a ofendê-lo também. O padrão da contenda fica absolutamente pueril. Há um momento engraçado no qual o mediador, Heródoto Barbeiro, pede que ambos parem de falar para que o programa siga. Sensível ao pedido, o jornalista suspende a fala. É aí que Orestes Quércia solta: “Cala a boca!”, o que obviamente desperta novamente a fala de Rui Xavier. Para quem quiser conhecer (ou memorar) o episódio, aqui está o link para o vídeo:

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Hoje em dia há muitos xingamentos nas discussões de ideias. Vemos isso diariamente em telejornais apresentados por jornalistas que passam boa parte do tempo proferindo adjetivos como “canalha”, “sem vergonha” ou “bandido” que em nada ajudam na compreensão (e muito menos na resolução) dos problemas da sociedade.

O mesmo vale em nossos ambientes particulares, entre amigos e familiares. Se rotularmos o outro ou o comportamento do outro, é pouco provável que alcancemos alguma resolução satisfatória para o problema que enfrentamos. Evitar essa conduta é bastante útil para se alcançar algum bem-estar no cotidiano. Nesse sentido, é interessante também mencionar que a razões para usarmos adjetivos em situações de conflito é porque estamos também emocionalmente tocados por algo que não pôde ser explicitado. Despertar sentimentos ruins no outro acaba trazendo certa sensação de justiça no curto prazo (“Pelo menos o outro também está angustiado agora”) mas essa solução obviamente não é vantajosa para ninguém. O desafio é identificar isso para evitar que a ofensa se transforme num padrão estável (no qual essa sensação de justiça se torne mais reforçadora para o comportamento verbal do que a efetiva resolução do problema). O mais saudável e produtivo é compreender que problemas existem, explicitar as insatisfações surgidas deles sem adjetivar o outro ou seu comportamento, aceitar que cada um tem seu próprio modo de lidar com as situações e estar disposto a abrir mão de algo em prol de uma solução que seja interessante para todos os envolvidos naquela situação.

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