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Por Arnaldo Cheixas
Terapeuta analítico-comportamental e mestre em Neurociências e Comportamento pela USP, Cheixas propõe usar a psicologia na abordagem de temas relevantes sobre a vida na metrópole.
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Trânsito I — Por que ele nos enlouquece?

Vamos começar uma conversa que certamente será recorrente nesse espaço, porque o tema é relevante e porque está longe de se esgotar: o problema do trânsito no Brasil e especialmente em São Paulo, a maior de suas cidades. “Mas esse blog não é sobre terapia?”, você pode perguntar. A questão é que o trânsito traz […]

Por VEJASP
Atualizado em 26 fev 2017, 23h17 - Publicado em 9 dez 2013, 14h04

Vamos começar uma conversa que certamente será recorrente nesse espaço, porque o tema é relevante e porque está longe de se esgotar: o problema do trânsito no Brasil e especialmente em São Paulo, a maior de suas cidades. “Mas esse blog não é sobre terapia?”, você pode perguntar. A questão é que o trânsito traz intersecções entre vários aspectos da vida em sociedade. O trânsito de pessoas e veículos se dá no espaço público, que é regulado por normas (leis) ditadas pelo poder público (municipal, estadual e federal) e também por valores compartilhados na sociedade. E quem é o indivíduo nesse coletivo? Não é uma questão fácil de responder. Mas esse conjunto de normas e valores exerce forte influência sobre cada um de nós no momento em que estamos no espaço público. Dependendo da situação e do estado do indivíduo em determinado momento nesse espaço público, ele pode ser tanto vítima quanto algoz.

Walt Disney já trouxe esse tema no clássico episódio do desenho animado em que Pateta, ao entrar no seu automóvel, deixa de ser o Sr. Walker (algo como Sr. Pedestre), um pacato homem mediano, para se transformar no Sr. Wheeler (algo como Sr. Volante), um agressivo motorista. O que será que se passa com Pateta para que ele se transforme quando entra em seu carro?

(Foto: Reprodução)

De Sr. Walker a Sr. Wheeler: o pacato homem que se transforma em um agressivo motorista quando entra no carro (Foto: Reprodução)

O automóvel tem uma característica que passa despercebida e que pode nos ajudar a entender parte do problema. Ele funciona como uma extensão de nosso corpo. Quando dirigimos, estamos nos deslocando de um lugar a outro. É como se estivéssemos a pé, mas dentro de uma armadura. O carro, sob nosso comando, reproduz nosso estado a cada momento. Se estamos apressados, o carro estará como que também apressado. Se estamos agressivos, o carro estará também como que agressivo. O carro reflete para quem está fora dele nosso estado emocional e nossa capacidade de autocontrole. Pois bem. Mas isso ainda não nos responde o porquê de Pateta se transformar no Sr. Volante, o agressivo motorista. Pelo contrário, parece paradoxal, já que ele entra no possante muito pacato, sofrendo a transformação somente depois que segura o volante de fato. Quer dizer, por que ele não permanece pacato e tranquilo depois de entrar no seu carro?

Para entendermos esse processo ambivalente do comportamento de Pateta, temos de notar outra característica importante dos automóveis. Eles tornam seu motorista alguém anônimo, muito mais efetivamente do que acontece na condição de pedestre. Se afrontar alguém na rua enquanto caminha, você terá de lidar com o testemunho de várias pessoas, que facilmente poderão associar seu rosto (e sua identidade) aos atos que você praticou. Além disso, a duração dessa hipotética situação pode ser bastante prolongada. Assim, inibidos por essas barreiras sociais, tendemos a nos retrair diante do outro cidadão. Para tornar isso mais claro, imagine quantas vezes você já viu alguém fazer algo que você considera inadequado no espaço público, como jogar lixo no chão, cuspir na via pública, escrever nas placas do transporte público ou, mesmo algo que prejudique você diretamente, como um empurrão ou um assédio. Agora, das vezes que você lembrou… em quantas delas você se manifestou, procurando explicitar seu ponto de vista ao outro ou mesmo tentando impedi-lo de fazer o que você não aprova? A maioria de nós raramente se manifesta. Pois bem. Diferentemente, quando estamos dirigindo uma carro, ganhamos o anonimato. Nosso rosto é recoberto por uma máscara metálica, o carro; que, não podemos esquecer, é extensão de nosso corpo. Quando um motorista novato experimenta sua primeira experiência de irritação no trânsito e mete a mão na buzina, ele passa por uma descarga de adrenalina muito forte associada a um sentimento de raiva pelo outro (seja ele motorista, motociclista, ciclista ou pedestre). Mas, junto com essa raiva, ele entra também em contato com uma percepção que lhe traz alguma sorte de conforto. Afinal, ele não foi punido pela buzinada que deu. E ele ainda se lembra das muitas que já recebeu por ser motorista novato. Pronto… aqui está sendo plantada uma muda de um novo Sr. Volante. A buzinada, pensa o novato, é uma revanche justa pelas muitas que já levou por impaciência do outro. Ele acaba de ser iniciado nessa espécie de confraria neurótica dos motoristas de São Paulo. A cada fechada que ele leva, uma nova buzinada. Depois de algum tempo, ele aprende a xingar e se torna proficiente também nessa habilidade. Ele pode fazer o que quiser. Afinal, ninguém o viu ou, se viu, segundos depois o inimigo já se afastou.

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Até aqui entendemos uma parte importante do que desencadeia a agressividade nos motoristas. Mas falamos basicamente de fatores que influenciam no nível do indivíduo. Só que, ainda que estejamos interessados no recorte psicológico clínico que recai justamente sobre o indivíduo, não podemos ignorar fatores relevantes no plano coletivo. E são esses fatores que nos permitem entender quem é o indivíduo inserido no coletivo do trânsito e como esse processo de transformação comportamental do sujeito é potencializado por elementos sociais. Vou trazer como auxílio o antropólogo Roberto DaMatta, que foi consultor de um conjunto de pesquisas relacionadas ao trânsito contratadas pelo Governo do Espírito Santo no ano de 2007. A despeito de peculiaridades do trânsito capixaba, o recorte antropológico da análise dos dados levantados se aplica ao Brasil como um todo. E os fatores que emergem da reflexão de DaMatta são contundentes quando pensamos em grandes cidades brasileiras, conjunto do qual São Paulo é a maior representante.

Roberto DaMatta explica que nossa sociedade, por toda sua história desde o achamento português de 1500, está assentada sobre valores aristocráticos. Embora isso soe estranho quando pensamos no quanto somos alegres e informais, vemos que nosso veio aristocrático se manifesta em sua dimensão mais atroz, que é a visão de que existe uma hierarquia entre as pessoas. Somos todos iguais perante a lei mas “Sabe com quem você está falando?”. Na democracia obedecemos a leis mas na aristocracia obedecemos a pessoas. E é exatamente nesse ponto que talvez possamos entender porque há tantos “Sr. Wheeler” no Brasil. Somos oficialmente uma democracia. Mas temos tantos valores aristocráticos entranhados em nós mesmos que ficamos confusos em inúmeras situações da vida em sociedade. Isso acontece nas instituições, no comércio e na rua. No trânsito, essa confusão produz efeitos perversos, já que o automóvel é um instrumento forte, pesado e capaz de produzir estragos, danos e morte, o que de fato acontece. Sr. Walker é democrata mas Sr. Wheeler é aristocrata.

No caso do trânsito brasileiro, o que me parece ser central nesse movimento todo de ambivalência entre democracia e aristocracia é que o motorista oscila entre esses lugares opostos dependendo da conveniência. Enquanto tudo está em pé de extrema igualdade, somos democratas e obedecemos às leis (afinal, obedecer à lei não me atrapalha em nada) mas, quando temos de decidir quem vai atravessar primeiro o cruzamento, somos verdadeiros aristocratas… ou porque nos achamos mais merecedores da vez ou porque , pasmem, acabamos nos sentindo inferiores ao outro, o que gera raiva e nos transforma de qualquer modo em Sr. Wheeler. Em outras palavras, eu me torno um Sr. Volante ou porque me sinto superior ao outro ou porque me sinto inferior a ele e preciso fazer frente a isso usando meu carro.

Ainda voltaremos a esse tema do trânsito algumas vezes. Mas, antes de explorarmos melhor os aspectos psicológicos e comportamentais do ato de dirigir, gostaria de deixar essa reflexão. Cada um de nós deve refletir sobre si mesmo no trânsito, seja como motorista, motociclista, ciclista, esqueitista, pedestre… Como me comporto no trânsito? Como me relaciono com os outros no trânsito? Evite o ruído de pensar no comportamento do outro, que sempre acaba por justificar nossas ações agressivas. Pense simplesmente no seu próprio comportamento. Garanto, é o primeiro passo para você conseguir dirigir com tranquilidade.

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Que motorista é você… Sr. Walker ou Sr. Wheeler?

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Sugestão de leitura: Fé em Deus e pé na tábua, ou, Como e por que o trânsito enlouquece no Brasil – Roberto DaMatta. Editora Rocco: 2010.

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