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A dramaturgia de Alexandre Dal Farra e a realidade social e política: “eu sou pessimista na arte e otimista na vida”

Um dos mais profícuos nomes da dramaturgia atual, o paulistano Alexandre Dal Farra, de 33 anos, está em cartaz com “Abnegação II – O Começo do Fim” e “Bruto”. Como já é característica de sua obra, ali temos elementos da realidade política e social acompanhados de uma visão psicológica. “Abnegação II – O Começo do […]

Por Dirceu Alves Jr.
Atualizado em 26 fev 2017, 16h27 - Publicado em 29 Maio 2015, 08h08
O dramaturgo paulistano Alexandre Dal Farra: autor da trilogia "Abnegação" e "Bruto" (Foto: Mariana Marinho)

O dramaturgo Alexandre Dal Farra: autor da trilogia “Abnegação” e “Bruto” (Foto: Mariana Marinho)

Um dos mais profícuos nomes da dramaturgia atual, o paulistano Alexandre Dal Farra, de 33 anos, está em cartaz com “Abnegação II – O Começo do Fim” e “Bruto”. Como já é característica de sua obra, ali temos elementos da realidade política e social acompanhados de uma visão psicológica. “Abnegação II – O Começo do Fim”, segunda parte de uma trilogia política do grupo Tablado de Arruar, é inspirada na crise de identidade vivida dentro do PT em sua caminhada ao poder e pode ser vista na Oficina Cultural Oswald de Andrade. “Bruto”, por sua vez, ocupa o mezanino do Centro Cultural Fiesp – Ruth Cardoso para mostrar um grupo de jovens em uma trilha de consequências inimagináveis. As montagens têm entrada franca.

Com “Abnegação 2 – O Começo do Fim”, você mexe em um vespeiro que envolve atitudes e alianças que talvez tenham viabilizado a chegada e a permanência do PT no poder. Como fica seu olhar de cidadão ao criar essa história?

Na realidade, ao escrever a peça, eu não tive – e não tenho ainda hoje – a sensação de que teria controle sobre o que ela pode causar no público. Desde o começo, desde a decisão sobre o tema, o processo teve muito mais a ver com a tentativa de dar conta de uma série de questões, sensações e angústias que o assunto levantava para nós do grupo como um todo. O material que o assunto gerou na pesquisa me causou literalmente náuseas. Fiquei alguns dias passando mal. A peça tem muito a ver com tentar dar conta, em cena, dessa sensação, que é política, com certeza.

+ Cassio Scapin relembra Paulo Autran em “Visitando o Sr. Green”.

Como não se tornar parcial, seja qual for a sua posição política, e não colocar mais lenha na fogueira que vemos hoje em dia, deixando ainda mais todos contra todos?

Não sei se a peça joga lenha na fogueira. Tenho a sensação de que, nos dias de hoje, querer dar conta do que uma peça causa no público é algo bem difícil e talvez impossível – a não ser que o trabalho seja muito convencional e previsível. Prefiro o caminho da sinceridade comigo mesmo, que deve se desdobrar na relação com o público. E talvez eu ache esta a principal qualidade da peça: ela é extremamente sincera, real, calcada em um olhar que eu consigo sustentar. Além disso, se for pensar, há uma visão totalmente parcial sim, mas que nem por isso é unilateral. Não vejo o Jorge só como uma vítima. Ele também é bastante ingênuo. Penso que essa contradição, essa ambivalência, fica mais clara no epílogo de alguma forma.

Existe a inspiração clara no assassinato do prefeito Celso Daniel, certo?

Sim, como colocamos no início do espetáculo, há uma inspiração totalmente livre no caso do Celso Daniel. O nosso trato com o material foi mesmo livre, e esse comunicado no início da peça vem, inclusive, para, além de assumir essa conexão, também deixar claro que se trata apenas de uma inspiração, sem pretensão de verdade.

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+ Leia entrevista com Claudio Botelho, que estreia “Nine, Um Musical Felliniano”.

Temeu alguma polêmica maior ou até quem sabe uma represália por levantar essa questão até hoje um pouco nebulosa?

Em algum momento do processo, houve um medo vago e generalizado de estar mexendo em coisas que não se pode mexer, de estar correndo algum tipo de risco. Mas depois, conforme a peça ficava pronta, o fato de que se tratava antes de tudo de uma ficção foi ficando mais e mais claro também.

Até que ponto dá para disfarçar a realidade de ficção ou nem se preocupa com isso?

Não acho que é muito uma questão de esconder a realidade pela ficção, mas até mesmo o contrário. De certa forma, nesse caso, a ficção é mais real do que a realidade, porque a realidade tal e qual talvez não traduzisse o horror que o caso me passava. Acho que aqui a ficção vem, não no sentido de mascarar, mas de tornar a realidade ainda mais real. É como se o que ocorre no palco não fosse uma reprodução da realidade, mas algo mais real do que ela. Como se eu buscasse no fundo uma possibilidade de realmente me afetar com essas coisas que no mundo já não me afetam mais, passam batido. Para além de todas as interpretações possíveis para o caso, ele é necessariamente terrível. E é, no fundo, desse horror que estamos falando. É esse horror que a peça busca traduzir e é muito mais amplo do que esse caso em particular, e não a realidade em si.

"Abnegação 2 - O Começo do Fim": sessões na Oficina Oswald de Andrade (Foto: Anelize Tozetto)

“Abnegação 2 – O Começo do Fim”: sessões na Oficina Oswald de Andrade (Foto: Anelize Tozetto)

Qual é o limite para tratar de realidade social e política sem ficar chato para o espectador? A realidade pode parecer ficção e não incomodar tanto quem se dispõe a vê-la no palco?

Quando decidimos colocar a voz em off, citando o caso do Celso Daniel como uma inspiração concreta, foi porque percebemos que os espectadores que não fizessem essa conexão perderiam algo da experiência de assistir ao espetáculo. Ou seja, nesse caso, embora não se trate de uma peça documental, creio que o fato de ela ser inspirada na realidade faz uma diferença. É algo daquele efeito do “baseado em fatos reais” que parece agregar algo nesse caso. Mas repito que a peça é totalmente ficcional. A realidade aparece enquanto pano de fundo, enquanto uma espécie de aviso que nos diz, “algo disso se refere ao mundo real”, ou seja: não é só um monte de ideias malucas de alguém. Acho que, no fundo, isso obriga a pessoa a olhar mais para o horror de que a peça trata. Se não houvesse esse pano de fundo, seria mais fácil dizer simplesmente que o dramaturgo é um psicopata e, assim, não entrar em contato real com nada do que a cena traz.

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Por outro lado, o personagem Jorge pode ser apenas uma metáfora para qualquer outro segmento da sociedade, o cara que não topou participar de um modelo e pagou um preço por isso. Perfis como o de Jorge não têm vez ou são eles que podem salvar?

Também acho que ele é uma figura mais geral, com certeza. É isso que, para mim, importa em tornar a peça claramente uma ficção. No entanto, eu acho que Jorge é a figura que não topa participar de um modelo, mas também é aquele que ajudou a criar o tipo de modelo de oposição – afinal, trata-se de um partido de esquerda –, e, de dentro desse modelo, decide retirar-se quando aquilo que ele mesmo criou parece tomar um rumo que condena. Ou seja, podemos pensá-lo como alguém que resiste, mas, por outro lado, Jorge também é um traidor. O que está negando foi ele mesmo que construiu. Além disso, não há outro modelo disponível, ou seja, essa negação dele, que parece heroica, logo se mostra totalmente inócua do ponto de vista da transformação do modelo em si: a única coisa que Jorge consegue com isso tudo é a própria morte. Embora seu incômodo seja importante, seu ato não gera nada e, de um outro ponto de vista, aqueles que ficam estão talvez menos “limpos” do que ele. Mas também têm a oportunidade de fazer mais algo concretamente para que esse modelo venha talvez a se modificar. Penso que essa contradição aparece no epílogo. O caminho do mártir não gera necessariamente nada de positivo. E talvez esse “modelo” seja muito mais forte do que o Jorge imaginava. A luta tem que durar muito mais e é muito mais difícil do que uma simples negação, que não deixa de ser um ato corajoso, mas talvez infantil.

O elenco de "Bruto": montagem em cartaz no Núcleo Experimental do Sesi (Foto: André Stefano)

O elenco de “Bruto”: montagem em cartaz no Núcleo Experimental do Sesi (Foto: André Stefano)

O que teria em comum as dramaturgias da trilogia “Abnegação” e de “Bruto”?

“Bruto” foi escrito para o Núcleo Experimental do Sesi a partir de ideias que eu e o Lubi (o diretor Luiz Fernando Marques) conversamos juntos. Mas existe algo em comum entre os textos, que é, de alguma maneira, a questão da legitimidade. Se no “Abnegação 2” aparece a legitimidade política, a legitimidade de um modelo, “Bruto” traz também esse assunto, talvez de forma mais indireta: a ilegitimidade dos nossos discursos e mesmo dos nossos próprios sentimentos e desejos, que, evidentemente, são também construções e não só impulsos naturais. Por isso, podem ser mais ou menos legítimos. Em um livro recente, o filósofo italiano Giorgio Agamben fala da importância do ato do Papa Bento XVI renunciar ao papado. Ele aponta justamente essa renúncia como uma tentativa de lutar contra a ilegitimidade da igreja, como uma forma de tentar fazer com que essa legitimidade se recrie a partir da crise. Creio, como Agamben coloca, que estamos em um momento de crise de legitimidade política, que demandaria de nós todos algo dessa renúncia, algo desse reconhecimento de que o modelo de política atual se esgotou. A política não tem mais nenhuma legitimidade enquanto algo que represente os anseios da população. Restou-lhe apenas a lei, o direito e ficou totalmente de fora a legitimidade, a justiça. Nesse sentido, acho que o “Bruto” também trata disso: de um momento em que os discursos perderam a conexão com aqueles que os proferem e, como que boiam no ar, esperando para alguém que os queira utilizar.

E onde a história de “Abnegação” dialoga com os personagens que você criou para “Bruto”? Aqueles jovens podem estar a caminho de uma rede semelhante a da dos personagens de “Abnegação” ou não existe mais espaço -–pelo menos, nesse momento – para almejar uma mudança social que venha seguida de uma decepção futura?

Creio que os jovens do “Bruto” já estão em um momento posterior mesmo. É um pouco o resultado do “Abnegação 2”, que é esse esvaziamento total da dimensão política da sociedade. Eu acho que isso se deve à situação da esquerda no Brasil, que, em grande medida, decorre dos caminhos do PT, o grande catalisador da esquerda. Acho que a partir do momento em que o PT chegou ao poder nacional a esquerda foi perdendo mais e mais a sua voz institucional –  e hoje ficou quase que restrita aos movimentos sociais e talvez aos pequenos partidos, como o PSOL. Ou seja, ela perdeu o espaço institucional que em algum momento tinha começado a ganhar, o que proporcionou experiências interessantíssimas em âmbito municipal, em diversas cidades governadas pelo PT nas décadas de 80 e 90. Esse vazio institucional da esquerda que foi se criando depois fez com que a política brasileira como um todo perdesse a legitimidade, simplesmente porque a esquerda forte é o único caminho para a legitimidade política como um todo. A direita é ilegítima por definição. Ela busca a ilegitimidade, porque ela é necessariamente um engodo enquanto discurso, na medida em que precisa dos votos daqueles que prejudica.  É por isso que os partidos que não têm origens de esquerda, para mim, não interessam muito artisticamente: eles não são contraditórios. Estão fazendo a sua função, que é manter a máquina fisiologista do estado brasileiro funcionando. Não acho que as personagens do “Bruto” vão virar as do “Abnegação”. Eu não sei o que elas vão virar, mas vai ser outra coisa, acho.

+ Confira cenas e crítica da peça “Mateus, 10″, que rendeu o Prêmio Shell ao autor.

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Você tem filhos. Como você vê o futuro? É também pessimista? E de alguma forma os seus filhos influenciam no que você escreve? Desculpa o clichê, mas talvez você pense que mexendo em assuntos da nossa realidade pode estar fomentando uma realidade mais legal para o futuro deles?

Eu tenho um filho de dois anos e outro de onze. Já é quase um jovem daqueles do “Bruto”. E mais um está por vir, nasce em setembro!  Acho que devo ser bem otimista ou completamente louco. Bom, mas na verdade, talvez eu siga, de forma totalmente inconsciente, porque não tenho realmente nenhum controle sobre o ânimo que as minhas peças têm, aquele preceito segundo o qual devemos ser pessimistas na teoria e otimistas na prática.Eu sou pessimista na arte e otimista na vida. A arte traz algo de mais profundo, de subterrâneo. São fantasmas meus que acabam vindo à tona sem que eu os controle totalmente. Eu os chamo e deixo que eles vivam. Quando eu fui aprendendo a lidar com isso, creio que fui aprofundando a minha escrita. Aceitei que não tenho como controlar a tendência e nem a atmosfera política das minhas obras e elas servem como expurgo de coisas terríveis que existem dentro de mim, que existem dentro de todos nós. Por isso, acho que, paradoxalmente, à medida em que penso menos no público, me aproximo mais dele, na medida em que estou em contato com coisas profundas minhas, que também são coisas profundas do público, porque não somos indivíduos isolados. Somos um imenso coletivo que passa constantemente por coisas muito semelhantes, que nos formam a todos, ainda que habitemos pontos diversos dessa grande estrutura. Não penso também nos meus filhos quando escrevo,  ao menos até hoje não pensei. Mas acho que essa sinceridade que eu busco sempre é um caminho em que realmente acredito, para que se exponha coisas que ficam escondidas. E isso eu gosto de pensar que é um benefício para os meus filhos de alguma forma. Talvez eu queira abrir espaço para que o que temos de ruim venha à tona na arte, para que não precise vir na vida.

+ Em junho, Débora Falabella estreia “Mantenha Fora do Alcance do Bebê”.

O próximo passo é “O Filho”, novo espetáculo do Teatro da Vertigem, inspirado em “Carta ao Pai”, do Kafka.  Ali entra um pouco mais dos seus filhos ou o filho pode ser mais você?

O texto neste momento já está concluído. Quer dizer, como os ensaios estão acontecendo, sempre pode haver pequenas mudanças. Mas pela forma como esse processo se deu, creio que isso não vai ocorrer muito. A Eliana Monteiro (diretora) está erguendo a peça juntamente com a equipe, que é incrível. Eu vi poucos ensaios ainda, até porque ultimamente estive muito ocupado com outros textos que estava precisando entregar, um deles para o Grupo XIX, que vai estrear em setembro uma peça baseada no Teorema do Pasolini, e um outro para o KUNYN, que entra em cartaz em junho ainda uma peça baseada no livro “Orgia”, de Tulio Carella. Sobre “O Filho”, creio que não entra ainda os meus. Acho que o filho da peça seria mais eu mesmo ou todos nós de alguma forma… Foi uma tentativa de repensar “Carta ao Pai”, em que me dei conta que, talvez, na atualidade, essa carta fosse muito diferente. Talvez esse pai de hoje – e, aqui, me incluo também enquanto pai – precisasse receber uma outra carta, que não o acusasse de tirano, como a do Kafka. Talvez o pai de hoje pudesse ser acusado de ficar o tempo todo voltando a ser um filho.

Alexandre Dal Farra: recriação de "Carta ao Pai", de Kafka, para o Vertigem

Alexandre Dal Farra: recriação de “Carta ao Pai”, de Kafka, para o Teatro da Vertigem

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