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Indicações do que assistir no teatro (musicais, comédia, dança, etc.) por Laura Pereira Lima (laura.lima@abril.com.br)
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Marcelo Marcus Fonseca, do Teatro do Incêndio: “antes de tudo, o que precisa andar é a peça, não o espectador”

Criado e dirigido por Marcelo Marcus Fonseca, o musical “O Pornosamba e a Bossa Nova Metafísica” tem a ambiciosa proposta de analisar os caminhos percorridos pela MPB, desde a década de 30 até o estouro internacional da bossa nova. E não é que a montagem da Cia Teatro do Incêndio dá certo. Na pista da […]

Por Dirceu Alves Jr.
Atualizado em 26 fev 2017, 19h16 - Publicado em 22 jan 2015, 12h45
Marcelo Marcus Fonseca: raízes da MPB e a ancestralidade no palco (Foto: Don Fernando)

Marcelo Marcus Fonseca: raízes da MPB e a ancestralidade no palco (Fotos: Don Fernando)

Criado e dirigido por Marcelo Marcus Fonseca, o musical “O Pornosamba e a Bossa Nova Metafísica” tem a ambiciosa proposta de analisar os caminhos percorridos pela MPB, desde a década de 30 até o estouro internacional da bossa nova. E não é que a montagem da Cia Teatro do Incêndio dá certo. Na pista da sede do grupo, na Rua da Consolação, 1219, mitos como Carmen Miranda (interpretada por Gabriela Morato) e Ismael Silva (o ator Diogo Cintra) aparecem em cenas bem costuradas e de fácil comunicação. São mostrados ainda episódios reais como o suicídio de Assis Valente, o soco que Madame Satã (papel de Valcrez Siqueira) deu em Geraldo Pereira e a relação de Noel Rosa (Gustavo Oliveira) e Aracy de Almeida (Rebeca Ristoff). Quase no final do caminho, Vinicius de Moraes (vivido por Fonseca) convida para uma tarde em Itapuã e todos lembram aqueles tempos em que mesmo a tristeza era mais bela. “O Pornosamba e a Bossa Nova Metafísica” pode ser visto aos sábados, 21h, e domingos, 20h, no Teatro do Incêndio, com ingressos a R$ 40,00, até 31 de maio. E, agora, Marcelo Marcus Fonseca, paulista de Santo André, de 43 anos, fala um pouco sobre o seu teatro, a MPB, os musicais e os reflexos da indústria cultural.

De onde surge a ponte da Cia. Teatro do Incêndio com a MPB?

O Teatro do Incêndio tem na música ao vivo um recurso de comunicação. A composição para os espetáculos acontece dentro dos ensaios. A música brasileira é resultado direto da nossa formação, começando das batidas africanas nas senzalas e se transformando em um magnífico modo de expressão. Isso foi assimilado por mim ainda na infância, quando meu avô me mostrava sambas. Além disso, sou do candomblé, filho de Oxaguian e convivo muito próximo ao que parece restar de nossa ancestralidade. Seria natural a discussão dessas referências dentro do grupo. A MPB é algo muito epidérmico em minha geração, mas também em quem não tem acesso a ela. Como diz a letra, “o verso do samba é conselho”.

Você é músico também, não?

Sou compositor e toco samba. Um país que é criador de Noel Rosa, de Wilson Batista e de um “pedreiro” chamado Cartola tem que perder qualquer síndrome de cachorro magro porque é primeiro mundo. O samba melhorou até o jazz. Pergunte sobre Mr. Jobim nos Estados Unidos.

+ Leia entrevista com o ator Paulo Verlings, de “Beije Minha Lápide”.

Existe uma dramaturgia muito consistente nos seus espetáculos. Como você costura essas histórias a ponto de dar uma unidade à encenação?

Grande parte da minha formação como artista se deu pelo estudo de dramaturgia. Frequentei o seminário de dramaturgia do Chico de Assis no final da década de 80, ainda adolescente, e convivi com autores em um movimento de leitura de textos realizado pela Aparte. Foi nesse período que entendi o significado da carpintaria dramatúrgica e o texto com ponto de partida para qualquer invenção. Pode se ter um milhão de ideias para encenar, desde que isso seja descortinar o subterrâneo do autor. Com o período de estudos sobre surrealismo, passamos a incluir profundamente o conceito de poesia encadeada nos diálogos. Poesia é síntese. É imagem que some em imagem e assim sucessivamente. A ação dramática é isso: movimento interior. Antes de tudo, o que precisa andar é a peça, não o espectador. Depois disso, podemos convidá-lo até para descer a serra e voltar durante a apresentação que fará sentido. Quando você lê uma obra como “Tio Vânia”, por exemplo, você é levado em velocidade para muitos lugares dentro das curvas e paisagens interiores riquíssimas dos personagens, enquanto acompanha suas impotências, tédios, silêncios.

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Você usa Umberto Eco, Arthur Schopenhauer e outros autores. Essa pesquisa é mais para embasar a dramaturgia ou você colhe referências mais explícitas?

Em “O Pornosamba”, tudo foi criado em sala de ensaio, inclusive a dramaturgia. O ponto de partida foi o ouvido. Todos os elementos deveriam surgir ao mesmo tempo: pela música, um personagem da letra, uma roupa, um movimento de luz, uma opinião. Sempre permito que não se tenha uma obra fechada até se ter certeza que foi criada alguma linha narrativa. Por mais radical que possa ser um experimento, é preciso lembrar que teatro não existe sem o espectador. Quando tentávamos, no auge de nossa piração, criar uma dramaturgia qualquer para “São Paulo Surrealista”, um de nós fez a pergunta: “por que ‘A Via Láctea’, do Buñuel, é surrealista e eu entendo?”. Isso esclareceu muita coisa. Se você faz cinema para ser assistido, o sujeito precisa acompanhar o caminho de Santiago de Compostela junto com os personagens, senão ele é excluído do evento. Então você precisa ter algo de sólido, localizado no mundo, mesmo que transfigurado para que a experiência seja com o espectador e não para o espectador.

"O Pornosamba e a Bossa Nova Metafísica":  Valcrez Siqueira é Madame Satã

“O Pornosamba e a Bossa Nova Metafísica”: Valcrez Siqueira é Madame Satã

E assim fica mais fácil contar cinco décadas de MPB?

A MPB é muito coerente. Sua linha evolutiva até o tropicalismo é de assimilação e antropofagia com tudo que o estrangeiro sempre enfiou goela abaixo do brasileiro, por sempre nos considerar somente exportador de matéria-prima. Mas aí o sambista sai pela gente, pela inteligência e pelo ritmo e desemboca naquele movimento que assombrou o mundo chamado bossa nova. O Brasil vira ao mesmo tempo produzido e produto. No espetáculo, a história da música não é didática, mas apresentada pela dor dos compositores. É de certa forma um espetáculo reflexivo, provocador. Mantemos encontros para ler filosofia, tocar músicas, nosso cotidiano procura incorporar poetas nas discussões. Então, quando surge um texto, deixamos que referências circulem livremente e, às vezes, elas viram falas. É o caso, por exemplo, de Schopenhauer, que de um exercício sobre a morte de Carmen Miranda, se tornou texto na boca da atriz. Por fim, é preciso que o espectador faça parte do evento.

+ Leia mais sobre “O Pornosamba e a Bossa Nova Metafísica”.

De que forma ao recuperar a música e parte da história de astros vocês realizam um trabalho de conservação da memória da MPB?

Ismael Silva, Candeia e Vinicius de Moraes são meus contemporâneos. Eu entendo a vida assim como um encontro permanente com as pessoas pelo tempo. Uma espécie de diálogo, entrevista ou até um belo porre na companhia deles. A obra é a respiração de um artista que fica solta por aí e, de repente, conversamos com ele. Essa questão de memória para mim é um pouco presente, não tenho apego ao passado, principalmente ao que eu nem vivi. O que continua é vital, está aí, e tem sua força renovada sempre que se manifesta em público. Respiração vai ao vento e o ar é de todos. Quanto você escuta Nelson Cavaquinho, você respira Nelson Cavaquinho. E entende.

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O grupo tem um público  jovem pelo que verifico nas apresentações. Você acha que eles já sabem o que vão assistir e ouvir?

Não tratamos o jovem de maneira formal ou burocrática. Já em “Baal – O Mito da Carne”, em 1997, o grupo tinha um público jovem muito grande. Com “São Paulo Surrealista”, retomou a ligação dessa tendência. Todo mundo tem recursos para fazer sua própria leitura do mundo. Acho que esse público vem de uma identificação com a nossa vontade de vida, de encontro, de ocupar a calçada na frente do teatro, de dizer não ao isolamento. A maioria não sabe o que vai ouvir, mas acaba se envolvendo ao menos esteticamente com o espetáculo. Mesmo sem saber nada da vida de alguns compositores, as histórias narradas são instigantes ou engraçadas. Tenho visto jovens cantando muita coisa junto, o que prova que a juventude, pelo menos a que eu tenho visto no teatro, não é assim tão sem informação.

Marcelo Marcus Fonseca e Vitor Dallman: "O Pornosamba" está na sede do Teatro do Incêndio

Marcelo Marcus Fonseca e Victor Dallman: “O Pornosamba” está na sede do Teatro do Incêndio

Até que ponto a máxima de que “brasileiro não tem memória” faz sentido ou, de uns tempos para cá, os produtores também estão colaborando para que o passado seja esquecido mesmo?

Quando se faz feijoada em casa é memória. O brasileiro tem memória, só não acha para comprar. O sujeito fica em casa domingo à tarde e liga a televisão. Qual opção ele tem? Um documentário sobre o Batatinha? O Paulinho da Viola falando de chorinho? A Cida Moreira cantando Cartola ou Dolores Duran? Não. Mandam o cara comprar o Leco-Leco e dizem que é legal. Ele pensa que a música é boa. É lixo sim. Sons sem recurso, ofensivos ao ouvido.  É ruim, é desinformação, embrutecimento do cidadão. Todos nos chamando de burros. Os produtores estão no papel deles: vender. E rindo de quem compra.

Temos uma febre de musicais sobre a trajetória de grandes astros da MPB. Alguns são muito válidos como recuperação biografia e outros bastante frágeis. O que você acha desse “movimento”?

Eu faço peças com música ao vivo, mas não sou fã de musicais. Se a música no teatro não está aliada a nenhum elemento reflexivo sobre a sociedade, se ela é uma mera reprodução de um disco ou entretenimento comercial, não me interessa. Eu só posso aceitar um musical sobre Carmen Miranda em que ela tome bolas. Assim como de outras personalidades e suas relações com vida, com as drogas, com os veículos de comunicação… Retratar um artista com seu lado glamouroso é mentiroso e desleal com o próprio artista.

+ Confira a lista das peças que você deve ver nos teatro de São Paulo em 2015.

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Mas pode ser válido como redescoberta dos artistas ou funciona mais como mero produto mercadológico? 

Toda divulgação da MPB é algo importante, não pela memória, mas por ser algo não superado por nada. Aí temos dois lados: a avidez dos lucros e a presença viva de obras quando apresentadas de forma honesta. O que não pode é um musical sobre João Gilberto com alguém berrando  “Oba-lá-lá” como se fosse a Beyoncé fazendo lambaeróbica com um violão. O público é ótimo. Querem o espetáculo e recebem. Duvido que apareçam no Teatro do Incêndio para ver um quase anti-musical, mas, caso isso aconteça, podem até gostar.

A cena final de “O Pornosamba” é um tanto simbólico com aquele monte de lixo espelhado pelo palco. Depois do samba carioca e da explosão da bossa nova, a qualidade teria caído tão drasticamente assim mesmo?

Um diretor de teatro amigo meu, o Marco Antonio Braz, disse, meio triste, na saída da peça: “é isso mesmo, não é? É esse lixo empurrando a poesia para as margens”. Eu acho que, nessa hora, todo artista é chamado para o enfrentamento. Porque uma das causas da desigualdade social é o sufocamento da cultura de raiz, a disseminação de bens culturais que ajudem na formação do pensamento crítico e divergente.

Gabriela Morato como Carmen Miranda: cenas bem costuras e de fácil comunicação

Gabriela Morato como Carmen Miranda: cenas bem costuras e de fácil comunicação

A música perdeu qualidade porque os compositores também ficaram mais rasos, têm formação cultural mais frágil, é um reflexo do Brasil mesmo?

Se Elton Medeiros, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Nelson Sargento e tantos outros estão vivos, como posso dizer que a música perdeu qualidade? O que se perdeu foi o respeito por nós mesmos por parte da indústria fonográfica. Mas isso faz tempo. A turma tem resistido bem. As gravadoras vão falir. Mas a música já foi composta e será lembrada daqui a 200 anos.

Você tem um trabalho de resistência com o Teatro do Incêndio, principalmente ao abraçar a ideia do grupo ter sua sede. Já foram três nos últimos quatro anos, certo? É muito mais amor que pragmatismo?

Antes de tudo, considero o Teatro do Incêndio como uma ideia, mas do que um espaço ou um grupo. Considero um meio de juntar pedaços de pessoas e descobrir juntos como nos reconstruímos e revidamos a todo tipo de não. Ter uma sede se tornou uma necessidade primordial para que houvesse uma continuidade de um trabalho de pesquisa cênica, de experimentações diversas e para manter um acervo construído nos últimos anos. Tivemos que mudar de espaço, principalmente por causa da especulação imobiliária, considerada talvez a maior inimiga da cidade. O proprietário tem uma oferta boa, despeja; vê um prédio chique sendo levantado ao lado, sobe o aluguel. Agora, estamos firmando o ponto na Rua da Consolação, 1219. Nosso público já descobriu o caminho e é ele um dos grandes responsáveis por mantermos as portas abertas.

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A bilheteria colabora de alguma forma para manter essa estrutura ou é lei de incentivo?

A bilheteria paga parte de nosso aluguel e isso nos deixa orgulhosos dessa troca, mas inseguros com o futuro. Nosso último incentivo foi em 2011, quando fomos contemplados com a Lei de Fomento ao Teatro. Se não contamos com apoios pontuais a projetos, o grupo precisa colocar sua parte para manter a tudo. E vamos em frente, planejando, pensando, criando. Só existe uma saída sempre para o teatro: seguir em frente. O grupo foi recentemente tombado como Patrimônio Cultural e Bem Imaterial ao lado de outras 21 companhias. Mas isso precisa se transformar em um caminho para a proteção desses grupos. No nosso caso, precisamos de apoio para manter 22 artistas e técnicos, um projeto que recebe crianças para seu primeiro contato com exercícios de teatro, um curso de formação para técnicos de luz, manutenção do nosso acervo, espaço e produção de novas ideias.  Precisamos manter uma ideia viva. E o encontro permanente.

Cia. Teatro do Incêndio: "O Pornosamba e a Bossa Nova Metafísica" fica em cartaz até 31 de maio

Cia. Teatro do Incêndio: “O Pornosamba e a Bossa Nova Metafísica” fica em cartaz até 31 de maio

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