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Indicações do que assistir no teatro (musicais, comédia, dança, etc.) por Laura Pereira Lima (laura.lima@abril.com.br)
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Camila Appel e a tentativa de uma linguagem própria em “Véspera”

  Em setembro de 2010, o texto de estreia da “filha da dramaturga Leilah Assumpção” chegou aos palcos da cidade. Entre o tragicômico e o romântico, a paulistana Camila Appel flertou com o absurdo em “A Pantera”, mostrando certo tino para a tarefa exercida pela mãe desde a década de 60. Em cartaz no Teatro […]

Por Dirceu Alves Jr.
Atualizado em 27 fev 2017, 12h21 - Publicado em 30 jun 2012, 10h29

 

Rafael Maia, Juçara Morais, Silvia Lourenço, Tadeu Di Pyetro e Cris Nicolotti em “Véspera”, cartaz do Teatro Itália (Foto: Bob Sousa)

Em setembro de 2010, o texto de estreia da “filha da dramaturga Leilah Assumpção” chegou aos palcos da cidade. Entre o tragicômico e o romântico, a paulistana Camila Appel flertou com o absurdo em “A Pantera”, mostrando certo tino para a tarefa exercida pela mãe desde a década de 60. Em cartaz no Teatro Itália, a tragicomédia “Véspera” é a segunda investida de Camila e, nesse trabalho, a autora de 31 anos apresenta ousadia e potencial para construir uma obra de personalidadel ou, pelo menos, para tentar encontrar uma linguagem diferenciada.

Sob a direção de Hudson Senna, o espetáculo centra foco no absurdo das relações familiares em uma era dominado pela tecnologia. A montagem funde elementos clássicos presentes no eficiente cenário de Márcio Vinicius, com referências – nos afiados diálogos – a equipamentos de última geração. Deixa no ar, porém, a precisão do tempo de ação.

A trama se inicia em um 24 de dezembro qualquer, quando uma família abastada prepara-se para o almoço do dia antes do Natal. Depressiva, a mãe (interpretada por Cris Nicolotti) lamenta a ausência do filho, que vive na Europa e não vira para a ceia. O irônico pai (papel de Tadeu Di Pyetro) parece pouco se importar com tudo o que acontece, enquanto a filha (a atriz Silvia Lourenço) anseia por livrar-se da refeição para encontrar o namorado. A apática empregada (Juçara Moraes), por sua vez, traz uma notícia que desestabiliza a todos. Uma queda geral de energia impede o funcionamento de qualquer aparelho eletrônico e um sujeito da vizinhança (Rafael Maia) encarregou-se organizar uma assembleia para estudar formas de reverter a situação.

Camila busca nesse ponto de virada a essência da sua peça. O que, nos dias de hoje, poderia reunir pessoas tão diferentes em torno de um objetivo? Certamente não a refeição de uma data festiva ou a defesa de algum embate ideológico. Partindo dessa pane, o texto questiona as carência, fragilidades e barreiras estabelecidas entre as pessoas na atualidade.

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Em um desempenho econômico e surpreendente, Cris Nicolotti constrói com profundidade o papel da mãe que já desistiu de se comunicar com os parentes. Atriz consistente, Silvia Lourenço cresce ao longo do espetáculo, principalmente quando investe na perplexidade diante da família. Em meio a esses dois destaques, a direção de Hudson Senna realça uma unidade e o estranhamento em todo o elenco, sublinhando a solidão de cada um. “Véspera” ainda está longe de representar a maturidade de Camila Appel, mas evidencia uma saudável pretensão de mapear algo significativo da sociedade de seu tempo, como sua mãe já fez em “Fala Baixo Senão Eu Grito” e “Vejo um Vulto na Janela, Me Acudam que Eu Sou Donzela”.

 

Entrevista: Camila Appel, dramaturga

“Os stand-ups fazem tanto sucesso porque são atuais”

 

A paulistana Camila Appel, autora da tragicomédia “Véspera” (Foto: Bob Sousa)

Sua ligação com o teatro começou muito cedo?

O teatro passou despercebido durante muito tempo. Cresci acompanhando as peças da minha mãe como se esse universo não me pertencesse. Nunca imaginei que escreveria. Meu primeiro desejo profissional, aos sete anos, foi “quero ser caixa do supermercado”. Consigo ver o que me fascinava naquela mulher sentada no caixa, ouvindo atentamente cada história e sorrindo. Ela escutava as velhinhas comentarem o significado de cada item no carrinho. Queria ficar ali, enquanto uma esteira de seres humanos desfilava pela minha frente. Também amava o som do aperto de cada botão na máquina registradora. Hoje vejo uma associação desse som com o da máquina de escrever e do computador. Fico hipnotizada pelo som das teclas e gosto da dança dos dedos. É uma distração válida para minha extrema racionalidade – que, muitas vezes, se comporta como um amigo inconveniente.

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Foi acostumada desde pequena a ir ao teatro com sua mãe?

A primeira peça que vi foi uma montagem de “Fala Baixo Senão eu Grito” em Cuba. Tinha nove anos. Minha mãe me fantasiou de alguma coisa e me levou junto. Apesar de o fato parecer interessante, minha primeira memória do teatro é sensorial. Eu subia no palco para brincar com o cenário e lembro do cheiro dessa experiência. Um cheiro que fazia minhas mãos suarem. Acho que os deuses do teatro, esses que fazem seu espetáculo quando as cortinas se fecham, têm um cheiro específico e viciante.

Você ficava por perto enquanto Leilah estava escrevendo?

Não via minha mãe escrevendo porque ela se escondia em um canto do outro lado da casa. Lembro dela horas deitada na sala, braços dobrados sobre os olhos. Eu achava que minha mãe estava dormindo, mas logo respondia: “Filha, eu estou pensando”. Sempre achei esse negócio de estar “pensando” algo intrigante. Mas nunca me preocupei em “pensar” também. Parecia uma atividade parada e solitária. Quando adolescente, não conseguia me comunicar muito bem com minha mãe. Aliás, não conseguia me comunicar de jeito nenhum, o que a levou a me escrever cartas. Ela as publicou num livro chamado “Na Palma da Minha Mão”, dizendo que eu seria obrigada a ouvir tudo que tinha para dizer, porque seria muito chato se eu não lesse um livro escrito para mim. Funcionou.

 Quando mostrou algum escrito seu para ela pela primeira vez?

Sempre escrevi, mas não pensava nisso como profissão. O que eu escrevia causava grande estranhamento nas pessoas, e comprendia isso como rejeição. Hoje, eu entendo que ser estranho não é ser ruim. Meu primeiro texto teatral foi “A Pantera”, mas não foi proposital. Não sentei na cadeira e falei: “Vou virar dramaturga”. Fui fazer um curso de escrita e optei por dramaturgia porque ouvi que o professor era muito bom. Quando contei para minha mãe do curso, ela disse: “Sei… Mas é só por exercício, né, minha filha?”. Na época, em 2009, eu já tinha publicado a fábula juvenil “Do Avesso” e escrito um livro de ficção científica, “Abri a Torneira para Você Passar”. Disse que o curso de dramaturgia seria um exercício para a literatura sim. Mas saí do curso com a peça pronta, e minha mãe, após grande hesitação, resolveu lê-la. Ela tinha medo de não gostar. A reação foi excelente e desde então tem me estimulado para exercer a profissão.

Quais são as principais referências da obra de sua mãe que você tenta transferir para a sua?

Não consigo ter consciência de uma influência da dramaturgia de minha mãe. Pode ter, mas eu não consigo enxergá-la. Acho nossa forma de escrita muito distinta, e ela também nos vê dessa forma. Não há palpites específicos. Coloca sua opinião de forma geral: gosto ou não gosto. O título de “Véspera”, por exemplo, ela não gosta. E o que minha mãe mais gosta é a ação da protagonista Eva costurar a própria linha da vida (na mão) para encompridá-la e assim consolidar a ilusão da imortalidade.

A personagem da Silvia Lourenço fala que adia o momento de ser mãe por medo de mudar de ciclo e também porque assim vai encerrar o ciclo de sua mãe. Como é lidar com a sombra de ser filha de uma expressiva dramaturga e as comparações que surgem o tempo inteiro?

Não sinto essa comparação. Vejo nossos espaços bem diferentes, pela escrita ser tão distinta. Os ciclos existem e são difíceis de serem pontuados e sentidos. Quando o filho inicia a própria família, está de alguma forma, iniciando o fim do ciclo de seus pais. Nossos pais vão falecer e não vejo nada de normal nisso. Você não vai ao velório do pai de um amigo e diz: “Calma, não chora, isso é tão normal”. Eu acho lidar com a morte dos pais algo surreal. Ver a pessoa que te criou numa cama de hospital, precisando de cuidados, sofrendo, é bizarro. A personagem da Silvia não formou a própria família ainda, apesar de, aos olhos da mãe, já ter passado da idade. Essa filha não só tem medo de ocupar o lugar da mãe, como fecha os olhos para o envelhecimento dela. Ela se nega a ver o processo de demência mental de Eva e permanece apática, respondendo com agressividade ao estado frágil da mãe. Afinal, crescemos achando que nossos pais são imortai, e de alguma forma acho que são mesmo….

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Pensa que está passando a ocupar um espaço que é de sua mãe, pegando o gancho de seu texto “encerrando o ciclo dela” ou, por outro lado, você pode incentivá-la inclusive a se renovar, a produzir cada vez mais?

Conscientemente, sei que nunca vou ocupar o lugar da minha mãe. Ela é insubstituível e não tenho a pretensão do meu teatro significar para a minha geração o que o dela significou para a dela. Sou uma iniciante. “Véspera” é meu segundo texto a ser encenado, e ainda não visualizo o impacto do que escrevo. Mas essa questão de “ocupar o lugar dela” não pode ser analisada literalmente. É mais uma sensação. Quando falei para minha mãe que eu tinha escrito uma peça, em 2009, ela torceu o nariz. Eu perguntei: “O que foi, mãe? Você tem medo da peça ser muito ruim e te envergonhar?”. Ela disse: “Não… Eu tenho medo é dela ser boa!”. Isso deve ter tido um impacto que eu não consigo mensurar. Mas desde que escrevi “Véspera”, ela voltou a escrever e terminou uma peça linda que virá aos palcos no ano que vem. O título é “O Conforto à Beira do Abismo”.

Em “Véspera”, você fala de solidão, de envelhecimento, da falta de intimidade do casal, das fugas de cada um, desse vício em torno das novas tecnologias. Quando o teatro parte de uma questão intimista – no caso a relação dessa família –, ele costuma ser mais abrangente?

“Véspera” é uma peça que permite múltiplas leituras justamente por abordar muitos temas e deixar espaço para o público fazer as próprias conexões. É uma peça aberta. Acredito no alcance do universal através do específico. E acho que ser específico, simples, é meu maior desafio. Novos escritores querem ser extremamente originais e grandiosos. Esses vetores acabam nos distraindo da essência das coisas. E a essência é simples. Nosso ego é que complica tudo.

Os dramaturgos de hoje ainda parecem presos a temas do passado? Está faltando vasculhar mais o nosso cotidiano?

Acho que existe um chamado e uma carência do público no sentido da atualização – a vontade de questionar o universo em que vivemos, o nosso cotidiano. Os stand-ups fazem tanto sucesso porque são atuais. Os humoristas não vão questionar o impacto da ditadura na formação de uma geração. Eles focam nos políticos de hoje, satirizam o que lemos nos jornais. No sentido ao culto à nostalgia, o teatro brasileiro não se modernizou. Tento fazer uma simbiose entre o atual e o universal e acho algo difícil de ser alcançado. Não quero ter peças muito politizadas ou datadas, mas quero levantar questões pertinentes ao momento em que vivemos. “Véspera” aborda também o tema do impacto da tecnologia no núcleo familiar, acho essa questão bem atual e merecedora de atenção.

Você percebe uma preocupação de renovação entre os dramaturgos brasileiros?

Sinto que se inicia uma preocupação com a formação de novos dramaturgos. Há boas iniciativas como as do Sesi com o British Council (fiz dois pequenos workshops disponibilizados por eles, todos gratuitos), e temos agora o “Dramaturgias Urgentes” do Banco do Brasil. São iniciativas válidas e devem existir. Mas também acredito que o dramaturgo precisa ter muita iniciativa e ser meio autodidata. Não adianta esperar a peça surgir prontinha como um presente divino, ou o governo te oferecer um curso milagroso. Fiz pequenos cursos, mas minha formação mesmo foi em casa. Li muito sobre a arte da escrita, peças de teatro e entrevistas com dramaturgos. Há coletâneas com entrevistas que inspiram quem deseja escrever. Existe uma extensa e disponível bibliografia para pesquisa. Quem quiser, acha.

Os dramaturgos e diretores parecem menos interessados em espelhar o público?

Edward Albee, um autor que admiro, diz que a função do dramaturgo é levantar um espelho para as pessoas – se elas não gostarem do que estão vendo, mudem! Concordo com ele, mas acho um pouco arrogante a ideia de conseguirmos formar um espelho em que pessoas possam se identificar de forma universal. Pronto, acabei de dizer que sou arrogante. Busco levantar perguntas, sacudir poeira no inconsciente, tentar captar o movimento em andamento, apontá-lo como eu puder, através das ferramentas teatrais e apresentá-lo ao publico com a maior sinceridade e respeito possível. Sinceridade quer dizer o que a palavra diz mesmo e respeito é não entediar seu público e nunca subestimá-lo. O bom dramaturgo não escreve pensando na reação do público, porque não deve fazer concessões. Eu não me comprometo porque gosto do risco. Nesse aspecto, eu não quero estar em uma zona de conforto.

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Tanto em “A Pantera” como em “Véspera” você propõe uma pegada absurda para falar de situações cotidianas. Você acha que essa é uma forma trazer à tona discussões densas de uma forma mais interessante ao público?

Gosto da comparação que Antonin Artaud faz sobre a peste e o teatro. A peste, quando chega numa sociedade, desmorona os quadros regulares dela. Chacoalha o status quo e se torna justificativa para ações.  O caos justifica qualquer ação. Consigo criar situações assim, onde as pessoas se sentem livres, e se desmascaram, com o absurdo. É por isso que opto por usá-lo. Acho que também faz parte do meu estilo de escrita porque tudo que escrevi sempre beirou o absurdo. Quando comecei a escrever e queria ser escritora de literatura, uma professora me disse que ficção científica era pouco comercial e menos valorizado pela classe intelectual. Eu cheguei a tentar escrever algo bem realista, como a maioria dos jovens escritores fazem, onde o mérito não está na criatividade de ideias, mas sim na elegância com que se forma frases. Eu não sei o que é formar uma frase linda no sentido intelectual da coisa e admiro quem o faça. Acabo querendo criar, inventar, a cabeça gira em associações e a estrutura que me sinto mais livre para isso é a da ficção cientifica, das fábulas e do absurdo.

O teatro tem uma tendência a se acomodar em função do que o público quer ver? Ou o público se acomoda diante da acomodação dos autores, diretores e produtores de teatro? 

Peça fácil é aquela que chega ao público toda mastigada. Sob o meu ponto de vista, ela parte de um pressuposto errado, mas cumpre com um objetivo e deve existir como opção de entretenimento. Sei que “Véspera” não é um estouro de bilheteria, mas toda vez que tenho retorno de alguém que foi tocado por ela, quando vejo que ela se comunicou, tem tanta intensidade nesse retorno que me satisfaço. Sorrio, e sinto vontade de escrever mais.

Você tem outros textos finalizados? O que vem por aí?

Depois de “A Pantera”, eu escrevi outras duas peças, “As Pernas do Navio” e “Enquanto a Maré Sobe”, que não considero boas o suficiente para encená-las. Entãos veio “Véspera”, que considerei merecedora. Depois, escrevi “Última Chamada” ou “Uma Noite com Santos Dumont”. Agora rascunho uma nova. Continuando nesse ritmo, a próxima que eu escrever, deve subir aos palcos. Parece justo, não?

 

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