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Por Arnaldo Cheixas
Terapeuta analítico-comportamental e mestre em Neurociências e Comportamento pela USP, Cheixas propõe usar a psicologia na abordagem de temas relevantes sobre a vida na metrópole.
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Convidado Em Terapia: o problema da recaída no consumo de drogas

A psicóloga Fernanda Libardi fala sobre a questão e como tentar evitá-la

Por Arnaldo Cheixas
Atualizado em 24 jul 2017, 17h00 - Publicado em 17 jul 2017, 14h05

Segundo o mais recente Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (II LENAD), uma parcela significativa da população brasileira fez, faz ou fará uso de substâncias químicas ao menos uma vez na vida e é crescente o consumo em padrão de abuso ou de dependência. É um problema que não pode ser ignorado. Um dos grandes desafios para pacientes, familiares e profissionais ao longo do tratamento é enfrentar a questão das inevitáveis recaídas. Para abordar o assunto, hoje quem escreve para o blog é a psicóloga Fernanda Libardi, que estudou o fenômeno em seu doutoramento pela Universidade de São Paulo.

 

O papel da prevenção à recaída no tratamento da dependência de drogas

A Maria é fumante há mais de dez anos e decidiu que era hora de parar o cigarro. Ela começou o dia bem, mas quando foi tomar o cafezinho após o almoço sentiu uma vontade enorme de fumar e não resistiu. Muitos podem ver isso como sinal de fraqueza da Maria mas, na verdade, o que vemos é o quanto o cafezinho da Maria estava fortemente associado ao cigarro e desencadeou uma fissura nela.

A dificuldade que a Maria teve em resistir ao cigarro foi a mesma de Pedro, que estava há dois anos sem beber, mas após uma avaliação ruim no trabalho, chegou em casa e bebeu; ou a de Mateus, que estava há meses sem usar cocaína e quando foi em uma festa com os amigos se submeteu à pressão de usar “só mais essa vez”.

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Esses exemplos têm em comum o fato de que o que levou as pessoas a recaírem está na interação entre elas e o ambiente em que elas vivem. No caso da Maria foi uma forte associação entre o cafezinho e o cigarro, o Pedro passou por uma situação estressante e o Mateus passou por uma pressão social em um lugar no qual ele costumava fazer uso da droga.

Antes da recaída ocorrer, essas pessoas enfrentaram um processo de abstinência e cada uma pode ter atingido a abstinência de maneiras diferentes. Quando se inicia um tratamento para dependência de drogas, uma primeira questão é se a abstinência será exigida desde o início ou se ela pode ser alcançada aos poucos. Quando a abstinência total inicial não é exigida o pressuposto é de que fica muito difícil para pessoas que fazem uso crônico de drogas conseguirem a abstinência total, porém, elas podem ir diminuindo o uso, podem utilizar a droga em horários menos prejudiciais a atividades sociais ou ao trabalho e, com isso, ir permitindo que atividades que tenham sido abandonadas ao longo da dependência sejam reintroduzidas.

A ideia por trás dessa abordagem é a de que o indivíduo só se tornou dependente porque a droga preencheu lacunas importantes de sua vida. Portanto, o objetivo inicial não seria a abstinência total e sim auxiliar o indivíduo a criar um repertório que o ajude a lidar com essas lacunas e, conforme esse processo for acontecendo, a droga deixaria de ser necessária e seu uso diminuiria. Embora essa abordagem seja muito utilizada em centros de tratamento, é importante lembrar que não existe uma fórmula para se tratar a dependência. Em alguns casos a abstinência total desde o início do tratamento pode ser a melhor opção.

Dentre as formas de se alcançar a abstinência total, uma alternativa é a internação voluntária ou compulsória, sendo esta última necessária apenas em casos nos quais a pessoa está colocando a vida dela ou de outros em risco. Embora a internação seja muito eficiente em ajudar o adicto a ficar abstinente, ela não pode ser vista como um tratamento completo, mas sim como o início de um processo, pois é no momento de se reinserir na sociedade que o indivíduo entra em contato com os problemas que o levaram a se drogar. É a não continuidade do tratamento que leva às altíssimas taxas de recaída pós internação.

Então, como prevenir a recaída? Ter a abstinência como objetivo inicial pode ser muitas vezes frustrante para a família e para o paciente. É importante assumir que as recaídas podem ocorrer com maior frequência no começo até que elas irão se espaçar e nunca mais acontecer. Retomando a recaída da Maria, vimos que ela recaiu quando foi tomar o cafezinho habitual. Uma das explicações neurológicas para a recaída é que o sistema nervoso central vai sofrendo alterações conforme a dependência se agrava e, se o uso da droga for crônico, algumas dessas alterações podem se tornar definitivas.

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Dentre essas mudanças está uma maior sensibilidade aos estímulos que estavam associados ao uso da droga, como o hábito do café. Em decorrência dessa maior sensibilidade, a apresentação desses estímulos pode causar a “fissura” (forte desejo de usar a droga), fato que pode aumentar a vulnerabilidade à recaída. Ou seja, o indivíduo recai não porque é uma pessoa fraca, sem força de vontade, mas sim por causa de processos orgânicos e comportamentais que envolvem a dependência.

Em geral, esses estímulos só se tornam associados ao consumo da droga se são repetidas vezes associados com o consumo. Para o alcoolista, o bar em que a bebida é consumida pode se tornar um estímulo associado ao consumo de álcool, para o usuário de cocaína pode ser estar em festas, para o usuário de heroína pode ser a visão de uma seringa.

Além dos estímulos associados ao consumo da droga, passar por situações estressantes, como no caso do Pedro, também podem levar à recaída. Os sistemas neurais ligados a resposta ao stress ficam mais sensíveis conforme a dependência se agrava e tornam mais provável que eventos estressantes sejam sentidos de forma amplificada por pacientes em tratamento, aumentando as chances de recaída. Portanto, é fundamental que as pessoas em tratamento identifiquem quais são os gatilhos que levam elas a sentir fissura, sejam estímulos anteriormente associados ao consumo, situações estressantes, entre outros.

Além do tratamento psicoterápico e medicamentoso, os grupos de ajuda podem ser importantes para a prevenção da recaída. Eles formam uma rede de suporte que muitas vezes o usuário, já desacreditado, não encontra em casa; além de se tornarem uma alternativa de socialização quando o paciente precisa se afastar de antigas amizades para permanecer abstinente, como no caso do Mateus do início do texto. Ainda, esses grupos proporcionam que o paciente seja muito gratificado por permanecer abstinente.

A recaída deve ser entendida como parte do tratamento, e ser usada como aprendizagem do que deve ser feito para evitá-la. Recair não significa começar do zero e sim aprender mais um pouquinho sobre o que é mais difícil de ser enfrentado por cada um na luta diária de se manter sem a droga.

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 Fernanda Libardi Galesi é especialista em terapia comportamental pelo Núcleo Paradigma de Análise do Comportamento e mestre e doutora pela USP. Atua como terapeuta em consultório particular. E-mail: fernanda.libardi@gmail.com.

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