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Por Arnaldo Cheixas
Terapeuta analítico-comportamental e mestre em Neurociências e Comportamento pela USP, Cheixas propõe usar a psicologia na abordagem de temas relevantes sobre a vida na metrópole.
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A crítica às vezes esquizofrênica de que São Paulo não funciona como as cidades europeias

De modo geral as cidades brasileiras carecem de planejamento, o que faz com que os serviços públicos não funcionem bem. Deslocamento, arborização, sustentabilidade, disponibilidade de áreas de convívio, segurança, harmonia arquitetônica, calçamento… Tudo vai funcionando com base em projetos pontuais e provisórios que respondem a demandas agudas. Isso impacta na qualidade de vida dos cidadãos. […]

Por Carolina Giovanelli
Atualizado em 25 fev 2017, 20h38 - Publicado em 14 dez 2016, 22h07

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De modo geral as cidades brasileiras carecem de planejamento, o que faz com que os serviços públicos não funcionem bem. Deslocamento, arborização, sustentabilidade, disponibilidade de áreas de convívio, segurança, harmonia arquitetônica, calçamento… Tudo vai funcionando com base em projetos pontuais e provisórios que respondem a demandas agudas. Isso impacta na qualidade de vida dos cidadãos. Em cidades grandes como São Paulo isso é ainda mais dramático, a despeito dos esforços recentes na promoção do espaço público em favor do coletivo.

Neste cenário é impossível não admirar o bom funcionamento das cidades europeias. Transporte coletivo vasto e pontual, ruas iluminadas, seguras e bem conservadas, alta disponibilidade de parques e assim por diante. Salvo exceções lá e cá, a regra é essa: cidades europeias funcionam bem, cidades brasileiras não.

Pós-verdade: quando a emoção fala mais alto que a razão

Há uma tendência de achar que eles são melhores que nós. Essa distinção entre “eles” e “nós” é complicada seja porque o Brasil se constituiu enquanto país em um processo de colonização europeu (com o extermínio de índios e a escravização de africanos, vinculando Europa e Brasil de maneira indelével), seja porque o processo de globalização tem desafiado a manutenção de parte das barreiras culturais e geográficas entre os povos.

Essa postura queixosa que emerge da comparação das cidades brasileiras com as europeias induz à conclusão de que essa percepção é fruto de nosso complexo de vira-latas. Mas, que me perdoe Nelson Rodrigues, o complexo de vira-latas não é a única explicação para as queixas comparativas que os brasileiros fazem.

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Parte dos que reclamam do funcionamento das cidades brasileiras é composta por pessoas de classes média e média-alta que visitam regularmente os centros urbanos dos países desenvolvidos. E parte desse grupo reclama bastante de como aqui as coisas não funcionam.

É aqui que entra a psicologia porque há uma incômoda contradição entre as reclamações que essas pessoas fazem e o modo como se comportam, dando o indicativo de uma espécie de esquizofrenia coletiva. É curioso que as pessoas que voltam do exterior reclamando de como sua cidade “é uma bagunça” e que aqui “deveria ser como lá” sejam muitas vezes as mesmas que aqui se comportam na direção contrária da promoção da qualidade de vida na cidade.

A pessoa acha incrível como os europeus são educados no trânsito mas, ao chegar aqui, estaciona seu carro em vagas para deficientes só um minutinho e desrespeita pedestres e ciclistas. Admira poder andar com o iPad na mão no metrô de Londres mas aqui se mostra contrário a qualquer ação governamental que compense minimamente a desvantagem social daqueles que, nascidos pobres, têm alto potencial para se tornarem alguém que lhe tomará o iPad da mão.

Não existe “dar um tempo” no relacionamento

Curte pedalar em Amsterdã mas é contra as ciclovias de São Paulo por serem mal planejadas. Posta fotos fazendo piquenique em um parque de Paris mas não usa os espaços públicos de São Paulo e critica o fechamento da Paulista para carros aos domingos. Essa desconexão, este rompimento com a realidade própria deste modo de pensar, tem contornos de esquizofrenia… uma esquizofrenia manifestada e reforçada coletivamente.

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A razão para esta contradição esquizofrênica entre comportamento aqui e admiração pelo que funciona bem no exterior me parece ser mantida pelo gosto que temos pela manutenção dos privilégios, dada nossa cultura aristocrática (como bem registrou Roberto da Matta em Fé em Deus e Pé na Tábua). Se usar o transporte coletivo lhe faz sentir-se menos importante, confie… você precisa de tratamento para ajudá-lo a fortalecer sua autoestima ferida ao longo do processo de formação de sua identidade.

Posso ser acusado de estar “viajando nas ideias” mas, vejamos, o planejamento urbano é um dos elementos que a ONU enxerga como desafios globais atuais. Recentemente, aconteceu em Quito a conferência da ONU sobre moradia (Habitat III) que trabalha a questão habitacional integrada com a questão mais ampla do planejamento urbano. A avaliação das Nações Unidas é a de que o modelo urbano atual falhou e que a prioridade que deve nortear todos os esforços de planejamento urbano é a redução da desigualdade, condição perpetuada no Brasil desde a ocupação do território pelos portugueses.

E a cidade de São Paulo vai mal em termos de distribuição de renda. O índice Gini (que vai de 0 a 1 – quanto maior o índice, maior a desigualdade) da cidade é 0,6453 (2010). Bem distante dos índices das cidades líderes do ranking, que giram em torno de 0,25.

Quer dizer, se queremos acompanhar a ONU na transformação de nossas cidades, precisamos vencer a desigualdade e, para tanto, poderíamos começar vencendo a esquizofrenia coletiva que nos leva a nos comportarmos de modo a produzir exatamente os problemas que tanto criticamos na cidade. Só se alcança essa superação olhando para o outro e renunciando à cultura de manutenção dos privilégios. São Paulo merece isso de cada um de nós… as próximas gerações também.

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